quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

ABORTO PROVOCADO E CIVILIZAÇÃO

Mais um texto, sem propagandas falaciosas, sereno, que nos faz pensar nas pessoas, diferentes das coisas. Espero que alguém (não alguma coisa) medite nestes argumentos muito racionais.


Aborto e civilização

José Manuel Moreira

O aborto voluntário vai tornar-se uma das grandes questões nas sociedades ocidentais. O regresso do tema à tolerante Holanda é só mais um sintoma. O interesse com que entre nós se vive o sim ou não no referendo é disso bom sinal. Há diversas formas de entrar no debate: desde a inconveniência ou ilicitude do aborto à fé religiosa, para cristãos com força de convicção de uma moral universal. Há outra posição que pretende ter validade universal: a científica, embora também aqui as provas não sejam acessíveis à imensa maioria dos homens e mulheres, que as admite por fé (na ciência).

A minha preferida – na linha de artigo (1983) do filósofo Julián Marias – é outra, acessível a todos e independente de conhecimentos científicos ou teológicos que poucos possuem. É a visão antropológica, fundada na mera realidade do homem tal como se vê, vive e se compreende a si mesmo.

Trata-se da distinção decisiva entre “coisa” e “pessoa”, que se revela no uso da língua. Em todas as línguas há uma distinção essencial: entre “que” e “quem”, “algo” e “alguém”, “nada” e “ninguém”. Se entro numa casa onde não há nenhuma pessoa, direi: “não há ninguém”, mas não me ocorrerá dizer: “não há nada”, porque pode estar cheia de móveis, livros, lustres, quadros.

O que tem isto a ver com o aborto? Muito. Quando se diz que o feto é “parte” do corpo da mãe, é falso, porque não é parte: está “alojado” nela, melhor, implantado nela (nela e não meramente no seu corpo). Uma mulher dirá: “estou grávida”, nunca “o meu corpo está grávido”. Uma mulher diz: “vou ter um filho”; não diz: “tenho um tumor”.

A pergunta a referendar, ao usar, em vez de aborto provocado, “interrupção voluntária da gravidez”, não só abusa da hipocrisia como se esconde sob a capa de despenalização. Os advogados do sim não gostam da comparação, mas com isto os partidários da pena de morte vêem as dificuldades resolvidas. Podem passar a chamar à tal pena – por forca ou garrote – “interrupção da respiração” (e também são só uns minutos).

Há ainda as 10 semanas, como se para a criança fizesse diferença em que lugar do caminho se encontra ou a que distância, em semanas ou meses, da sua etapa da vida que se chama nascimento será surpreendida pela morte.

O mais estranho é que para os progressistas o aborto é visto como sinal de progresso, enquanto a pena de morte é de atraso. Dantes denunciavam a “mulher objecto”, agora querem legitimar a criança-objecto, a criança-tumor, que se pode extirpar, em nome do “direito de dispor do próprio corpo”.

O direito (com bons propósitos) serve para nos impedir de entender “o que é aborto”. Por isso se mascara a sua realidade com fins convenientes ou pelo menos aceitáveis: o controle populacional, o bem-estar dos pais, a situação da mãe solteira, as dificuldades económicas, a conveniência de dispor de tempo livre, a melhoria da raça.

A tudo isto acrescem as tentativas de abolir as relações de maternidade e paternidade, reduzindo-as a mera função biológica sem duração para além do acto de geração, sem nenhuma significação pessoal entre o “eu”, o “tu” e o “ele(a)” implicados.

Felizmente, ao pôr-se a nu a grave dimensão da aceitação social do aborto, facilita-se o regresso de temas que os “progressistas” julgavam de direita e, por isso, ultrapassados: a família e a natalidade.

Não devemos estranhar que os mesmos que sempre se equivocaram sobre tudo, desde a natureza do regime soviético a Cuba, passando pelo fim do trabalho e as nacionalizações, se encontrem agora, de novo, unidos no “sim” ao aborto (e no “não” ao sofrimento dos animais). E, ontem como hoje, acompanhados de idiotas úteis. Alguns, pelos vistos, “liberais”, que desconhecem que a noção de liberdade para o liberalismo clássico é oposta à de “direito a ou de”. Para T. Jefferson os seres humanos são independentes, mas não da moral; se a desafiamos, não somos livres mas escravos, primeiro das nossas paixões e depois possivelmente da tirania política. Que tipo de governo democrático poderá controlar homens que não podem controlar as suas próprias paixões? Situação que piorará com a ilusão do Estado contraceptivo e a liberalização das oportunidades para a irresponsabilidade.

José Manuel Moreira, Professor universitário e membro da Mont Pélérin
Society

http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/opinion/columnistas/p
t/desarrollo/733650.html

3 comentários:

Anónimo disse...

Totalmente de acordo.
Mas o aborto existe, por mais imoral e inconveniente que seja. E os números são aterradores. Tal como acontece com a droga e a prostituição.
Para estes flagelos, há que encetar uma luta sem tréguas. Mas não às cegas, com as pessoas dominadas por paixões e preconceitos. Temos que ser realistas, tolerantes e, acima de tudo, inteligentes.
A verdade é que legislação que hoje existe (que não foi referendada)é má e não resolve nada. Há que a mudar.
Mas nunca num ambiente de verdadeira campanha política, onde as opiniões se tornam exacerbadas.
E penso que este referendo só veio complicar tudo. Lançou-se fogo à estopa. Agora falta a serenidade que se impõe para se resolver de uma vez por todas um problema tão sério.

A. João Soares disse...

Gosto das suas ideias. Realmente os grandes problemas sociais não se compadecem com politiquices, com votos de cores. Há que ouvir as opiniões de todas as facções mas em privado serenamente, sem paixões. As soluções devem ser precedidas de pareceres informais de todos os sectores.
Despenalizar a droga, os cheques sem cobertura, o aborto, qualquer dia, os assassínios... e depois... como é que se vive neste País?
Não vamos pelo melhor caminho. E quando se lança o fogo à estopa, depois o rescaldo demora e a serenidade não será suficiente para pensar sem paixão.
Um abraço
A. João Soares

Anónimo disse...

Cara Luisa.

Sou da sua opinião. Para mim o feto com um milésimo de segundo de vida é um ser vivo. Mais do que isso, é um ser humano. Mas é somente a "minha opinião".
Por muito que me custe, a minha opinão não passa disso, de uma opinião. E há outras opiniões a ter em conta. E a respeitar. Porque vivemos em democracia...
Quanto à ciência de que fala, ao contrário do que se pensa na generalidade, nela nada é definitivo. O que hoje é verdade, amanhã pode deixar de o ser. Nada há menos científico do que a expressão "cientificamente provado"!
Nota: o uso repetido da palavra "opinião" é intencional.