Publicado no PÚBLICO, Sexta-feira, 14 Março 2008.
Autor: General José Loureiro dos Santos
O contexto estratégico conjuntural que originou o Tratado de Badajoz de 1801, pelo qual Olivença passou paras a soberania espanhola, não se modificara integralmente em 1815, quando a devolução de Olivença a Portugal foi determinada pelo Tratado de Viena.
A relação de forças na Europa da Época não ordenou de modo peremptório e imediato essa devolução, remetendo-a para quando Portugal e Espanha considerassem oportuno - o que significava, de facto, submeter a resolução do problema ao entendimento Portugal-Espanha, logo aos objectivos nacionais de cada país e às tensões estratégicas correspondentes. A definição do momento oportuno, se não fosse efectuada por potências extrapeninsulares, teria de ser proposta por Portugal a uma Espanha da qual, naturalmente, nunca partiria a iniciativa. Para Portugal, o momento oportuno teria de coincidir com uma "oportunidade estratégica" favorável. Na altura do regime da ditadura, foi dito não ser oportuno levantar o problema.
Aqui reside o cerne do problema. Findos os acontecimentos que envolveram os dois Estados nas guerras napoleónicas e seus desenvolvimentos, a relação de forças europeias e mundiais nunca deixou de se traduzir, para a península, numa lógica de conflito e confrontação. Por trás do comportamento pacífico e amistoso entre os dois Estados, havia sempre a percepção, por cada um deles, que a existência do outro constituía uma ameaça. Ou porque poderia servir de cais de desembarque e base de ataque para forças poderosas que visassem a Espanha e/ou foco de contaminação política que fizesse perigar o seu regime (absolutista, liberal ou monárquico). Ou porque representava uma ameaça existencial para Portugal e/ou também poderia contaminar negativamente o seu regime.
Esta lógica de confrontação teve situações mais agudas e outras menos, mas nunca deixou de existir. A percepção dos responsáveis políticos portugueses ao longo dos séculos XIX e XX, até à guerra fria, foi sempre a de que tudo deveria ser feito para evitar uma crise aberta com a Espanha, pois tinham consciência de que a lógica de conflito existente entre os dois países se poderia transformar num confronto aberto muito desfavorável a Portugal. Confronto aberto que até poderia ser convenientemente provocado pelos governantes espanhóis, para fazerem esquecer os graves problemas internos que os seus súbditos sentiam, bem como os efeitos deletérios dos traumas causados pelos enormes abalos nacionais que afectaram Espanha.
Dentro desta lógica de confronto, tornava-se quase impossível alterar as relações de forças de modo a surgir uma oportunidade estratégica que nos permitisse procurar resolver a questão de Olivença junto dos espanhóis.
A lógica de confronto, embora atenuada pela natureza dos regimes então vigentes, não terminou durante a guerra fria. Só viriam a surgir modificações, e profundas, com a democratização dos dois vizinhos peninsulares, a queda do Muro de Berlim e, principalmente, com a globalização, o mercado comum europeu e, acima de tudo, com o estabelecimento do espaço Shengen. Estas novas linhas de força tiveram como resultado uma alteração profunda no contexto estratégico do relacionamento peninsular. Não porque surgiram desequilíbrios que nos fossem favoráveis em termos de confronto, mas precisamente pelo congelamento da lógica de confronto e a sua substituição por uma lógica de cooperação/competição.
A abertura de fronteiras e a liberdade de movimentos de pessoas, bens e ideias entre os dois países fizeram com que as regiões homogéneas naturais da península, todas periféricas, se tivessem aproximado, como que desafiando o centro peninsular - a despeito das fronteiras administrativas e políticas. Na Espanha, foram reconstituindo uma configuração multipolar em termos económicos, com as regiões periféricas a tentar "conquistar" poder político a Madrid, interagindo umas com as outras e também com Portugal, que além de região económica é um país soberano. Esta situação multipolar, num contexto de uma lógica de cooperação/competição, favorece Portugal, pois, de todas as regiões peninsulares com ligações a um centro de poder afastado (Bruxelas), é a única cuja independência lhe permite relacionar-se com o Governo espanhol no mesmo patamar político. Todas as restantes terão de sujeitar-se às orientações de Madrid.
Finalmente, esta lógica de cooperação/competição que caracteriza as nossas relações com a Espanha permitiu o aparecimento da oportunidade estratégica para que os dois países - amigos, aliados, que não encaram o outro como ameaça - resolvam a questão de Olivença. E para que Portugal possa tomar a iniciativa de abrir o diálogo.
É pôr fim a um contencioso que pode funcionar como um foco de potencial atrito e de conflito em situações de maior tensão entre as posições dos dois países. Lembremo-nos de que a História não acabou. Há muita História no futuro. Um futuro incerto e, provavelmente, muito perigoso. É avisado acautelarmo-nos. Olivença é um problema que se pode agravar, mas podemos fazer dele um pólo de atenuação de tensões entre os Estados peninsulares.
Não deve ser ignorada a realidade actual de Olivença, criada nos últimos dois séculos pela administração espanhola. Uma realidade que já não é sustentada apenas em elementos identitários lusitanos, mas em que persistem muitos deles. Olivença constitui uma micro-região, com características distintivas em relação aos espanhóis, mas também aos portugueses. Foi como se, na zona raiana, tivesse aparecido um elo de ligação entre os dois povos, semelhante a ambos mas deles diferenciado.
Para a solução desta questão são de afastar posições radicais, sem recuo e sem condições, antes recorrer-se a uma abordagem gradual e "soft", com a tónica na cultura: considerar a hipótese de permitir que os oliventinos escolham a dupla nacionalidade, autorizar o ensino da língua portuguesa por professores destacados por Portugal, além do castelhano já obrigatório, não proibindo o uso do português no espaço público, estabelecer uma delegação que promova a cultura portuguesa. Admitir mesmo a hipótese de se chegar a uma soberania partilhada sobre Olivença, como região especial e exemplo de amizade e cooperação entre os dois países, que, numa fase inicial, poderia assumir vínculos políticos mais fortes com Espanha do que com Portugal.
José Loureiro dos Santos
«General»
Nota: Este texto constitui a súmula da apresentação do livro de Ana Paula Fitas "Juromenha e Olivença, Uma História por Contar" das Edições Colibri, a publicar na íntegra no próximo número da "Revista dos Negócios Estrangeiros".
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