Acerca da Justiça em Portugal, nos tempos que correm, transcreve-se dois textos do Diário de Notícias de hoje de João Miguel Tavares e de Mário Soares
Inteiramente gratuito, eis o guia com que sempre sonhou, por João Miguel Tavares
A justiça em Portugal parece-lhe confusa? Não faz ideia porque é que todos os processos que envolvem pessoas importantes acabam sempre em regabofe? Diga não à desorientação! Em apenas 20 passos, eis o guia ideal para entender todos os casos que em Portugal começam com a palavra "caso":
1) Os jornais publicam uma notícia sobre qualquer pessoa muito importante que alegadamente fez qualquer coisa muito má.
2) Essa pessoa muito importante considera-se vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
3) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso desrespeito do segredo de justiça em Portugal, que possibilita a actuação de forças ocultas.
4) Inicia-se o debate sobre o segredo de justiça em Portugal.
5) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar na legislação portuguesa para que estas coisas não aconteçam.
6) Toda a gente conclui que não se pode mudar a quente a legislação portuguesa.
7) A legislação portuguesa não chega a ser mudada para que estas coisas não aconteçam.
8) As coisas voltam a acontecer: os jornais publicam notícias sobre essa pessoa muito importante dizendo que ainda fez coisas piores do que as muito más.
9) Outras pessoas importantes vêm alertar para o vergonhoso jornalismo que se faz em Portugal, que nada investiga e se deixa manipular por forças ocultas.
10) Inicia-se o debate sobre o jornalismo português.
11) Toda a gente tem opiniões firmes sobre o que é preciso mudar no jornalismo português.
12) Toda a gente conclui que estas mudanças só estão a ser debatidas porque quem alegadamente fez uma coisa muito má é uma pessoa muito importante.
13) Nada muda no jornalismo português.
14) Enquanto o mecanismo se desenrola do ponto 1) ao ponto 13) a justiça continua a investigar.
15) Após um período de investigação suficientemente longo para que já ninguém se lembre do que se estava a investigar a justiça finaliza as investigações e conclui que a pessoa muito importante: a) Não fez nada de muito mau. b) Já prescreveu o que quer que tenha feito de muito mau. c) É possível que tenha feito algo de muito mau mas não se reuniram provas suficientes. d) Afinal o que fez não era assim tão mau.
16) Pessoas importantes que são amigas dessa pessoa muito importante concluem que ela foi vítima de perseguição por parte de forças ocultas.
17) Pessoas importantes que não são amigas dessa pessoa muito importante concluem que em Portugal nada acontece às pessoas muito importantes que fazem coisas alegadamente muito más.
18) As pessoas citadas no ponto 17) iniciam mais um debate sobre a justiça em Portugal.
19) As pessoas citadas no ponto 16) iniciam mais um debate sobre o jornalismo em Portugal.
20) Os jornais publicam uma outra notícia sobre uma outra pessoa muito importante que alegadamente terá feito outra coisa muito má. Repetem-se os passos 1) a 19).
Vejamos o que Mário Soares publica:
Crise, Justiça, Democracia
(… ) 2. A Justiça vai mal. Posso mesmo dizer, sem exagero, muito mal. É talvez, a seguir ao aumento do desemprego (provocado pela crise), das desigualdades sociais (que aumentaram sensivelmente, nos últimos anos) e da pobreza, abaixo dos limites mínimos exigíveis de uma parte considerável da população, o sector da Justiça é dos que está pior e mais desacreditado. Não porque não haja bons magistrados judiciais e do Ministério Público e bons polícias, na Judiciária. Há. E alguns até excelentes. Está fora de causa.
Mas porque, nos últimos anos - por razões de corrupção ou outras -, a interpenetração entre alguns juízes, agentes do Ministério Público e polícias, com responsabilidades na Judiciária e certos meios da comunicação social (jornalistas "especializados", no mau sentido, em fugas de informação) têm vindo a desacreditar a Justiça, com a questão do segredo de justiça, particularmente tratando-se de processos que, por uma razão ou por outra, assumem maior expressão mediática ou envolvem personalidades políticas, empresariais ou futebolísticas. Os processos eternizam-se, as fugas de informação vindas dos inquiridores (Ministério Público ou Polícia Judiciária, donde poderia vir, além deles?) são mais do que muitas, fazendo-se "julgamentos na praça pública", de que ninguém está livre, baseados em boatos, rumores ou falsas informações. Sem que ninguém pareça ter força para pôr termo a uma situação deletéria, que envenena o País e destrói as instituições que nos regem.
É preciso dizer, basta! No Expresso último, o jornalista Miguel Sousa Tavares, num artigo notável e corajoso, como é seu timbre, intitulado "Como fritar um primeiro-ministro em lume brando" escreve, em síntese: "Desgraçadamente, chegámos a um ponto em que qualquer pessoa, por mais inocente que esteja, e em especial se for figura pública, pode ser executada em lume brando na praça pública." E ainda: "É grave que isto possa suceder com qualquer cidadão; é gravíssimo que isto possa suceder com o próprio primeiro-ministro, não por ser José Sócrates, no caso, mas pela saúde pública do regime democrático."
É também por isso que escrevi acima: basta! É uma situação que desacredita profundamente a Magistratura do Ministério Público e a Polícia Judiciária, bem como os órgãos da comunicação social que se façam eco de boatos e "fugas de informação" sem consistência ou de "campanhas" que tenham por objectivo destruir adversários políticos. Basta! Repito. São erros que se pagam caro. Se não há provas, digam-no. Se há, apresentem-nas no tribunal respectivo, em tempo oportuno. Mas não arrastem os processos meses e meses, envenenando as populações com as piores suspeitas. É um descrédito para a Justiça e para o País, com reflexos negativos na própria crise que atravessamos. Trate-se do caso Freeport ou dos McCann, do Apito Dourado, da Casa Pia ou dos diversos autarcas com processos pendentes há anos. Uma vergonha nacional! Ora, como disse há dias: "Já enjoa"...
A Decisão do TEDH (396)
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