segunda-feira, 25 de maio de 2009

Lopes da Mota e imagem da Justiça

A culpa é sempre dos outros

Por António Barreto, publicado em «Retrato da Semana» - «Público» de 24 de Maio de 2009

O MAGISTRADO Lopes da Mota não deve sair do EUROJUST. Não deve suspender o seu cargo. Nem pedir a demissão. Nem ser demitido. Se a representação de um Estado deve traduzir a verdade, ele é o homem certo no lugar certo. Não se compreenderia, por exemplo, que o representante do Estado português, em qualquer organização internacional, não soubesse falar a língua materna. Nem que o delegado de Portugal à NATO fosse um pacifista militante e um notório objector de consciência. Lopes da Mota é discutido e comentado em todos os jornais. É acusado de ter sido autor ou instrumento de pressões pessoais e políticas exercidas sobre outros magistrados. Por causa dessa acusação e após averiguações, é alvo de um processo disciplinar mandado fazer pelo Procurador-Geral da República. A maioria dos políticos e dos comentadores diz que se deve demitir e não reúne condições para exercer o cargo. O Primeiro-ministro, que o nomeou, diz que não tem nada a ver com o caso. Este currículo, limitado a uns factos recentes de conhecimento geral, faz dele o representante ideal num organismo europeu de coordenação entre os sistemas judiciários. Ele é o genuíno e fiel símbolo da justiça portuguesa.

A JUSTIÇA portuguesa é cara, lenta e burocrática. Está geralmente mais interessada no processo do que no apuramento da verdade dos factos e na prova. Os magistrados não são avaliados por entidade independente. Os sindicatos de magistrados são máquinas de poder político e corporativo a que o Estado democrático não soube opor-se. Os Conselhos Superiores servem os interesses das corporações e impedem que a voz dos cidadãos tenha alguma força e que a legitimidade democrática tenha eficácia na sua organização. A justiça portuguesa é um condomínio fechado, hermético e impermeável ao interesse público e às ansiedades dos cidadãos. A circulação entre conselhos superiores, sindicatos e tribunais superiores, passando, por vezes, por cargos políticos, consagra o poder de uma casta impune e inamovível. Muitos agentes da justiça, juízes, procuradores, polícias e advogados participam, sem contenção nem reserva, nos debates públicos, têm presença garantida nas televisões, nas rádios e nas capas dos jornais. Alguns orgulham-se dos seus sindicatos, entidades híbridas e absurdas dedicadas a organizar duas classes profissionais, a dar-lhes peso e força política e a preservar privilégios. Dirigem-se à opinião pública com ilimitada arrogância, evocando a sua independência, que consideram autogestão e soberania. As técnicas de investigação são toscas e, por vezes, atentatórias dos direitos dos cidadãos. Questões de família são adiadas anos, por vezes até à morte de um dos interessados. Conflitos comerciais não têm resolução, a não ser pelo desaparecimento das respectivas pessoas ou empresas. Por causa do processo e do atraso, as compensações obtidas pelas vítimas ficam aquém dos prejuízos causados. Crimes de corrupção, apesar de provados, são desculpados. Os procuradores têm poder a mais e não têm qualquer reserva na sua intervenção política, nem no modo como querem condicionar juízes, advogados e políticos. As fugas de informação e as famigeradas quebras de segredo e sigilo de justiça, geralmente dirigidas e deliberadas, são o mais impressionante retrato do estado a que a justiça portuguesa chegou. A reputação da justiça portuguesa no estrangeiro é medíocre e risível. A opinião pública portuguesa considera os magistrados e a justiça como um dos sectores da vida pública que menos merece respeito e confiança. A justiça portuguesa cria, não resolve problemas.

A CULPA é um fenómeno errático e fugidio. A sua trajectória é circular. Juiz, procurador, oficial de justiça, advogado, solicitador, polícia, ministro e deputado: cada um tem a certeza do seu comportamento exemplar e não hesita em culpar o vizinho ou todos eles. Para o juiz, a culpa do estado em que se encontra a justiça portuguesa é, sem dúvida, dos agentes do ministério público, dos advogados e dos políticos incompetentes. Já o procurador se queixa do governo, da falta de meios que este lhe concede, dos deputados que fazem más leis, dos juízes que se julgam infalíveis, dos advogados que não cessam de criar problemas e das polícias que estão às ordens do governo. Os advogados não têm dúvidas e apontam o dedo aos deputados, aos magistrados e aos procuradores, sem esquecer as polícias. O ministro, por sua vez, invoca a independência dos juízes para justificar o seu absentismo, ao mesmo tempo que se queixa das polícias, dos advogados e da verdadeira máquina de poder que é a Procuradoria-Geral. Os polícias consideram os juízes brandos, os deputados inúteis, o governo oportunista e os advogados obstáculos à justiça. Em comum, os corpos judiciais e outros “operadores” condenam os cidadãos impacientes, os comentadores e os jornalistas. Também em comum, o seu desinteresse pela causa pública e pela reforma deste estado de coisas.

HÁ CENTENAS de magistrados, procuradores, polícias e advogados que cumprem os seus deveres, que se esforçam por ser bons profissionais, que trabalham mais horas do que deles se esperaria, que resolvem casos a tempo, que dirimem conflitos, que nunca são fonte e origem de problemas e que resistem à volúpia do protagonismo televisivo e jornalístico. Mas essa não é a percepção que os cidadãos têm da justiça. Essa não é a marca da justiça portuguesa. Algumas características do sistema e o comportamento de uns punhados de “operadores” fazem da justiça o pior da sociedade, quando deveria ser o melhor. A justiça portuguesa sofre, no seu conjunto, da má reputação que alguns dos seus dirigentes ou responsáveis têm na opinião pública. É atingida pela incompetência dos deputados e pelo medo dos governantes. Colhe as consequências das políticas públicas. Tem a má fama causada pela rede de cumplicidades tecida há muito entre políticos e magistrados e fielmente traduzida na génese e na actividade dos sindicatos de magistrados. A justiça deveria ser a última instância de confiança. Deveria ser o exemplo. Em vez disso, é um caso. Um problema. O mais grave problema português.

6 comentários:

Duarte N C Neves disse...

Eis a tese, de um outro grande Senhor, que apenas e só (?), faz o cúmulo juridico do estado da Politica em Portugal.
Isto para nos lembrarmos, ou por outra, para eu vos lembrar, que hoje foi dado a conhecer-se o cúmulo juridico das penas do ex-presidente do Benfica.
Sinceramente, o homem é mesmo diabólico!
E, como ele, não haverão, mais?...
Um abraço:
Duarte Neves

A. João Soares disse...

Caro Duarte Neves,
O Vale Azevedo foi vítima de adversários do futebol, senão seria beneficiado pelos políticos. É um exemplo do azar dos Távoras. Como ele deve haver certamente muitos, mas vão passando pelas malhas que, pare os importantes, são muito largas. Em Portugal não há criminosos que usem gravata (ou há muitos poucos)
Um abraço
João

Mentiroso disse...

Um texto que põe por escrito tudo aquilo que toda a gente pensa. Afinal, ladrões, polícias, políticos, advogados, médicos, governantes, etc., não fazem todos parte das gerações rascas que surgiram do pós abrilada ou que apenas se aproveitaram da maré? Não foi este problema bem previsto quando já no tempo do Mário Soares se chamava à geração dos adolescentes de então a geração rasca? Nada a admirar, só a lamentar que isto não vai assim udar nos tempos mais próximos. Idem com a miséria, que segundo a direcção donde sopram os vento, vai no mínimo durar mais de duas décadas. Digam o que disserem, as palavras passarão e a miséria continuará: não há condições para outra previsão, tampouco condições para uma possível mudança.

A. João Soares disse...

Caro Leão Pelado,
Realmente, para maior desgraça do País, não são só os políticos, A sociedade está putrefacta. Gostava de poder continuar a ser optimista e incitar as pessoas a terem esperança, mas estão a faltar-me argumentos convincentes.
Quem de direito e quem de poder, nada fará para modificar isto porque estão acima do pântano e enriquecem com esta podridão, recebem dinheiro vivo nos partidos.
Quem poderia transformar isto não está interessado em matar a galinha dos ovos de ouro.
Isto não irá acabar bem.
Um abraço
João

Amaral disse...

João
Alguém um dia disse que a Política era a coisa mais porca. Para quê mais comentários.
Abraço

A. João Soares disse...

Amaral,
aquilo que diz refere-se à política com p minúsculo, à politiquice, à luta inter-partidária, sem escrúpulos.
A política com P maiúsculo é uma arte e uma ciência nobre relativa ao Governo dos Estados, garantindo ao povo a melhoria das condições de vida através de Educação, Saúde, ordem pública, Justiça, etc.

Um abraço
João