Transcrição de carta ao director publicada no PÚBLICO em 11-01-2003
Autocrítica de um cidadão-poeta. 030111
Fiquei muito sensibilizado quando vi e ouvi na televisão o cidadão Manuel Alegre a lamentar os estragos que teve na sua linda casa nas margens do rio Águeda, devido às cheias. Embora, como alguns jornalistas da televisão diziam, as pessoas já estejam habituadas a sofrer, de vez em quando, os efeitos das chuvas mais intensas e persistentes, é compreensível que muita gente se queixe de mais um azar lhes bater à porta. Por isso, ao contrário de palavras que tenho ouvido, concordo que o cidadão Manuel Alegre, tal como os outros, evidenciasse o seu desconforto perante os prejuízos sofridos. É que num Estado de Direito e democrático, os cidadãos são todos iguais perante a lei, perante o poder soberano, todos podendo lamuriar-se.
Porém, não me pareceu correcto que o mesmo cidadão se insurgisse contra o Estado. É que, neste caso, ele deve ter-se esquecido que ele próprio, como deputado, é Estado. Ele, com os seus pares, no Parlamento, segundo órgão de soberania, são responsáveis por legislar e controlar os actos governativos por forma a garantir segurança aos cidadãos, por forma a reduzir os riscos de estes sofrerem graves prejuízos com as cheias. Portanto, o cidadão Manuel Alegre, acusou publicamente o deputado Manuel Alegre de não ter tomado medidas para que aquilo não lhe tivesse acontecido com tanta gravidade. É o inconveniente das pessoas usarem dois chapéus!
Mas esse inconveniente não era de esperar do ilustre poeta Manuel Alegre, pensador, homem que sabe trabalhar dextramente com as ideias e transformá-las em palavras escritas que são o deleite de muitos portugueses. Se não me choquei em ver e ouvir o cidadão Manuel Alegre lamentar os estragos sofridos, fiquei, pelo contrário, muito espantado ao ver o pensador e literato esquecer-se que é uma figura do Estado, do Parlamento, e fazer uma auto-crítica pública tão assanhada. E isto, para não dizer que houve muito boa gente, mais prejudicada em percentagem da totalidade do seu património, e portanto, com mais razões para criticar os seus representantes nos órgãos de soberania e que, no entanto, se mostrou mais conformada com a sua falta de sorte.
Enfim, mais uma vez, se tornou evidente que a literatura é ficção. E que o mundo não progride pela mão de poetas que vivem num mundo virtual. Na China actual, o poder está nas mãos de engenheiros e não na de pessoas que jogam com as palavras mais ou menos floreadas. Por isso, tem tido, na última década, uma invejável taxa de crescimento sustentado.
Imagem da Net
Blogue da Semana
Há 5 horas
Sem comentários:
Enviar um comentário