A última curva...
Manel do Montado,in http://montadoaltaneiro.blogspot.com
Acordei sobressaltado com um estrondo que depois constatei ser proveniente do rebentar de um balão. As crianças, essas eternas fontes de riso e brincadeira arrancaram-me um sorriso adormecido. Lembrei os meus filhos…os gémeos tinham agora um ano e há seis meses e quatro dias que não os via. O mais velho lembrava-se de mim, dizia a mãe nos dois minutos que tinha por semana de telefone para ligar para casa. Encontrava-me no aeroporto de Milão – Malpenza, aguardando voo para Lisboa. Três dias antes, ainda em Sarajevo, havia recebido um convite para mais um tour de seis meses. Obviamente recusei, apesar de me garantirem que seria no Quartel-General da Missão e que não haveria patrulhas nem missões esquisitas. Para mim chegava.
Faltavam ainda quatro horas para o voo e decidi beber umas “bejecas” num daqueles bares de aeroporto. Afinal haviam passado seis meses e quase não gastei dinheiro nenhum…não havia onde fazê-lo.
Bebi durante mais de duas horas… Estava atascado de cerveja e de grapa… A velha anestesia do soldado era agora aplicada para ajudar a passar o tempo. Procurei assento junto à porta de embarque, faltava agora pouco mais do que uma hora.
Adormeci por breves momentos e só acordei com o “basqueiro” de uma grupo desportivo qualquer que embarcaria também para Portugal.
A bordo informei a hospedeira que não queria comer nada e que precisava de dormir. O tal grupo desportivo não deixou e pus-me a recordar…Era estranho, vinha-me embora mas sentia saudades dos que lá ficavam. Um turbilhão de sentimentos deu-me a certeza de que não voltaria mais…nem de férias. Pedi uma heineken à hospedeira.
Recordei a minha saída de Sarajevo e os meus últimos tempos adido a uma unidade militar inglesa. Conheci-os o suficiente nas mais de duas dezenas de patrulhas que fiz integrado na sua unidade. Aliás, estranhei que alguns deles, que logo ao início olham tudo o que não é british de soslaio, me saudavam militarmente e tratavam-me com deferência. Evans, esse meu grande amigo e irmão de armas, havia-se encarregado de os “brifar” sobre nós, os “velhos”.
Não sei o que lhes disse, só sei que me imitavam em tudo quando em patrulha, quer nas ruas de Sarajevo, quer nas montanhas em redor. Até os próprios sargentos ingleses e o oficial comandante de pelotão me tratavam de forma diferente do formalismo militar.
Um dia, numa dessas patrulhas nos arredores a norte de Sarajevo, encontrámos um pontão destruído mesmo antes de uma grande curva para a direita, ladeada de montanha de um lado e de uma várzea do outro. Ao fundo, a uns duzentos metros, uma casa de campo destruída indicava que aquela várzea havia sido terreno de cultura.
O tenente Higgins, comandante de pelotão, ordenou que um pequeno grupo avaliasse das condições da várzea para a passagem dos seis “Land-Rovers”. Cortam-se uns ramos de árvore, desbastam-se as ramadas e depois servem de espeto para aferir da macieza da terra para poder suportar ou não o peso dos carros.
Três soldados meteram-se à várzea, não antes de se estabelecer a segurança, tendo uma equipa passado a curva através da encosta da montanha, evitando assim alguma emboscada daquele lado.
A imagem lembrou-me as fotografias do meu pai da guerra em África, com os pica-minas sempre a picar o itinerário…Pequenos grupos de passarinhos pousavam aqui e ali à busca de alimento…De repente despertei naquela manhã calma e berrei para os “picas”:
- Stay where you are, stop!
O sargento Edwards veio ter comigo e perguntou-me se havia visto algo. Nem lhe respondi, corri até aos três rapazes e gritei para toda a gente ficar quieta. Passaram-se uns cinco minutos até que os pássaros, que haviam levantado com a algazarra e com o movimento do pessoal a tomar posições, regressaram em pequemos grupos a determinadas partes da várzea. Disse aos três rapazes para regressarem colocando os pés precisamente no local onde haviam pisado antes.
Expliquei ao tenente Higgins que acreditava que havia minas naquela várzea. Que na minha opinião o facto do pontão estar rebentado e não haver relatório da patrulha anterior sobre o facto, o que nos obrigava a passar através da várzea, aliado ao facto dos pássaros pousarem em sítios específicos, indicava que a terra havia sido mexida recentemente.
O ter sido criado no campo e o me ter lembrado das fotografias do meu pai, salvara a vida a alguns de nós. Aguardámos quase duas horas pela chegada do “heli” com os sapadores de engenharia. Naquela várzea foram encontradas e destruídas três minas anti-carro e oito anti-pessoal. O Pontão foi reparado.
Chegou o dia da partida e, inexplicavelmente, conduziram-me para outra parte do Aeródromo de Butmir. A hora de apanhar o avião militar para uma base italiana nos arredores de Milão aproximava-se e não percebia o motivo porque estava ali. Talvez me fossem dar uma recordação…
Uns minutos depois entrou o capitão William Hartmann e disse-me que estava na hora.
Cá fora o pelotão dos Royal Green Jackets em que estava integrado estava formado em uniforme de parada e prestou-me honras militares não protocolares. Não consegui articular uma palavra, postei-me na sua frente e recebi, eu um sargento, a continência de um tenente. Um militar não forma de óculos de sol mas naquele dia quebrei a regra. Olhei-os através das lentes para não me “desmanchar” na sua frente. Retribui a continência, virei-lhes as costas e quis sair dali para fora.
O major Barrows acompanho-me até ao avião, apertou-me a mão e disse-me qualquer coisa sobre as minhas capacidades militares…não o quis ouvir…de emoção já chegava.
Guardarei na memória aquelas imagens até que um dia me vá reunir aos outros que partiram antes. Guardo também o diploma/louvor que me deram e que não entreguei cá para o meu processo. Geraria invejas e ódios desnecessários e isso não era importante. Quem me conhece sabe o que é verdadeiramente importante para mim.
Soube depois que por cá um sargento fora condecorado por “bravura” por ter reagido a uma emboscada sérvia, quando na realidade, após o processo de averiguações, se concluiu que os tiros na sua viatura eram da sua própria arma e havia que justificar os disparos. Como o processo já ia adiantado e era tarde para desmanchar o logro, o homem lá foi condecorado pelo PR. Um outro, este oficial, que tinha o azar de adoecer na véspera das patrulhas que lhe competia fazer, para além de se esconder debaixo de uma mesa de snooker quando dos bombardeamentos e gritar que nem um desalmado, foi agraciado com a medalha de serviços distintos e colocado num posto no estrangeiro. Um outro ainda, também oficial, cuja fama de negociante na Bósnia lhe valeu vários comentários pouco abonatórios por parte de oficiais estrangeiros, tentou suicidar-se há pouco tempo com veneno. Pesar-lhe-á a consciência?
Quando regressei disseram-me, à laia de justificação nem sei do quê, e sem que eu tivesse perguntado alguma coisa, que só havia cota para condecorar um oficial e um sargento.
Foram condecorados um mentiroso e um cobarde…
Mil dias
Há 52 minutos
3 comentários:
Caro João Soares o nosso Manel escreve muito bem e tem outra vantagem, chama os bois pelos nomes!
Um abraço
MR
Que história.... isso é um trecho dum livro ou é verídico??
Muito bem contado, sim senhor
Amigo Relvas
Agradeço a sua vista.
Abraço
Amiga lusófona,
Um livro é escrito por pessoas por vezes com menos arte literária do que o Manuel. Sugiro-lhe que invista algum do seu tempo numa visita calma e profunda pelos textos maravihosos que encontra no seu blogue. Para isso, basta um clique sobre o nome (link) do blogue que se encontra o no início do meu post. Garanto-lhe que não não dará o tempo por mal empregue. Não há muita gente a escrever melhor.
Beijinhos
João
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