Como sinto falta de verve para ombrear com os muitos cronistas que ao assunto se referem, limito-me a transcrever duas pequenas crónicas extraídas de jornais diferentes, para que tal evento não fique ignorado por este cantinho de desabafos.
Sessão de propaganda
Público. 19.02.2008, Vasco Pulido Valente
A entrevista da SIC e do Expresso a Sócrates não foi uma entrevista, foi uma sessão de propaganda. Ricardo Costa mostrou bem o espírito da coisa, quando disse: "Já sei que não vai gostar desta pergunta, mas tenho de lha fazer...". Lá fez.
Quanto ao resto, ele e Nicolau Santos deram as "deixas" e tentaram não incomodar. Sócrates falou sozinho: sem interrupções, tranquilamente, abundantemente. E, como seria de prever, explicou a excelência da sua política macroeconómica e das "suas" reformas da educação e da saúde.
Explicou tudo isso como se não existisse mais nada em Portugal ou até como se Portugal não existisse. Parecia que vinha de outro mundo. Talvez porque houve um acordo prévio entre a SIC, o Expresso e o primeiro-ministro, ninguém se atreveu a mencionar assuntos tão prosaicos como desigualdade, inflação, salários reais, pensões de reforma, justiça, administração central e local, corrupção, autoritarismo e por aí fora.
Nem a pronunciar o irritante nome de Manuel Alegre. A SIC e Sócrates trataram o país como um comício do PS. Isto é, com segurança e com desprezo.
Sumário: Lições do eng. José Sócrates
Destak. 19 | 02 | 2008 11.02H, Isabel Stilwell
Antes de mais que fique bem claro o sacrifício imenso que fiz a bem da Nação, ao trocar o Dr. House, o prato favorito da noite de segunda-feira em família, pela entrevista do eng. Sócrates à Sic /Expresso. Acendem-se os holofotes e concentro-me. Sócrates é único, se não foi um aluno brilhante, é sem dúvida um professor. Um professor a quem só falta o ponteiro, e que não tem qualquer intenção de ser interrompido, naquela que seria uma verdadeira entrevista maratona.
Usando uns educados, mas ligeiramente afectados, «Por favor, se me deixarem continuar», «Caso me permitam», «Se me deixarem», conseguiu monopolizar a conversa.
Falou de Economia, Escola, e Saúde, de forma fluente, os números na ponta da língua, a linguagem clara. Tem jeito para isto, e nada do que diz nos choca. Garante que cria empregos, promete mais, e manifesta uma imensa esperança no futuro, tendo o cuidado de reconhecer que nem tudo é como desejava. É difícil saber que leitura faz o cidadão comum, do que vai ouvindo. Suponho que quem gostava do estilo, ficou a gostar mais, quem não gostava, aproveitou para cultivar o seu ódio de estimação.
«Nada daria mais gosto a um primeiro-ministro do que baixar impostos», «Quando tive que aumentar o IVA, contra uma promessa eleitoral, senti um problema moral muito grande», e frases do género tornavam-no humano. Um político que quer ser o nosso pai na Terra, mas às vezes vê-se obrigado a voltar atrás na sua palavra, mas para nosso bem. Lindo! Mas foi firme em relação ao BCP, acusando os accionistas de não negarem a interferência do Governo, quando nem ele, nem os seus rapazes, se meteram no caso. O futuro dirá se nos diz a verdade, ou se é um talento perdido para o teatro.
Confesso que me fez impressão a forma entusiástica como falou de Angola. Conhecendo um pouco da realidade do país, custa-me ver um político ser político, e afirmar que está tudo no melhor dos mundos. Cuidadoso, porém, defendeu-se, dizendo, «a não ser que alguém saiba alguma coisa que eu não sei, nunca se sabe!» Acho que há muita gente que sabe.
Rapidinhas de História - Livros
Há 36 minutos
3 comentários:
João
Não vi a entrevista. Apenas ouvi excertos e li partes. Mas quer-me parecer que realmente foi propaganda. Até o tabu que quer prolongar é disso exemplo. Claro que se vai candidatar. Claro que vai baixar impostos, etc, etc...
Boa semana
Abraço
Amaral,
Esses truques e habilidades são ferramentas clássicas dos governantes, e o povo prefere este de quem já conhece a fisionomia do que outros novos que ainda não conhece.
Antes de iniciar a campanha propriamente dita, aparecem medidas populares para atrair votos. a chamada politica com p minúsculo, a politiquice. Os da oposição hão-de dizer o pior destes e estes procuram denegrir o adversários. E vão distribuindo T-shirts e esferográficas pela populaça, mas na realidade, tudo se passa pisando a relva do estádio sem se importarem com ela. A relva neste caso é o povo.
Um abraço
Entrevista desnecessária
Para mais uma achega à interpretação da entrevista, fica aqui o artigo de opinião do DN de hoje, por BB, embora não tenha qualquer compromisso com ele, as suas ideias ou as organizações a que possa pertencer.
Cinquenta banais minutos
http://dn.sapo.pt/2008/02/20/opiniao/cinquenta_banais_minutos.html
Baptista-Bastos, escritor e jornalista, b.bastos@netcabo.pt
Um meu amigo, componente de Os Empatados da Vida, sete camaradas de Imprensa que, às sextas-feiras, se reúnem num almoço, qualifica uma senhora que publica livros como "a escritora desnecessária". Assaltou-me o apodo depois de ouvir José Sócrates, em duplicado, na SIC e na SIC Notícias. O adjectivo poderia ser aplicado ao chefe do Governo. Esteve, apenas, a falar: não disse nada além daquilo que todos nós sabemos. Para que país falou Sócrates? Que portugueses presume Sócrates que nós somos? Um bando de beócios, ou uma maioria subserviente?
Ele insistiu: "Os números não enganam." Enganam, enganam; sobretudo se por ele formulados. Aliás, a utilização dos números serve, ordinariamente, para os políticos ignorarem ou enganarem as pessoas. Disse que foram criados mais 94 mil novos empregos, mas o desemprego atinge níveis assustadores. A aritmética de Sócrates é tudo menos euclidiana e não calha a preceito num engenheiro. Com uma persistência sobressaltante, enreda-se numa teia de enganos. Tentou inserir o absurdo num sistema de ideias cada vez mais absurdas, através de uma combinação extraordinária de realidade com ficção. Cito Ortega: "Não sabemos o que se passa e é precisamente isso que se passa." Ele é bom em televisão, dizem. Se ser bom em televisão representa saber driblar, e escamotear o que tinha a obrigação de dizer - aí, é óptimo. O dr. José Hermano Saraiva também. Não significa que um e outro falem verdade. Embora prefira o segundo, porque quando brama: "Foi aqui! Foi aqui, nesta pedra sagrada, que esteve sentado Gonçalo Mendes da Maia!", sei que o desvario não traz consequências graves - e, acaso, pode suscitar no ouvinte a curiosidade de confirmar o facto numa leitura da História.
A entrevista foi um enfado. Os entrevistadores, sem graça nem rasgo. Os comentadores, um bocejo ininterrupto. Não foi culpa deles. Cinquenta minutos de banalidades. Impossível discretear seriamente acerca de um não-assunto. Eis o busílis: José Sócrates tornou-se num não-assunto político; apenas serve como sujeito de folclore. Valeu a pena assistir à curiosa sessão de esclarecimento, para admirar, de novo e sempre, a serena beleza de Ana Lourenço.
Politicamente, a intervenção do chefe do Governo resultou na bagatela do costume, com os laivos usuais de contida irritação, somente traída pelas contracções da face. Deve ser uma grande chatice tê-lo como chefe de qualquer coisa. Certamente cria um ambiente de crispação que, por vezes, deve atingir tensões dolorosas. Aquelas reuniões ministeriais dificilmente poderão ser percebidas fora de um cenário de melodrama shakespeariano. E a entrevista não escapou à regra: uma pausa na realidade dispersa e trágica. Desnecessária.
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