Francis Fukuyama
Os Estados Unidos devem renovar-se em profundidade. Já não ocupam isolados o primeiro plano da cena global; aí actuam, e com crescente êxito, outros grandes actores políticos, económicos e culturais
Francis Fukuyama 31/07/2008
Fareed Zakaria, colunista da Newsweek, fala do "mundo posterior ao domínio americano" para se referir ao que nos aguarda nos próximos anos. A primeira alteração evidente com que se defrontam os Estados Unidos tem a ver com a aparição de um mundo multipolar. Não se trata de um declínio. Os Estados Unidos continuam a ser a maior potência mundial. O que sucede é que o resto do mundo se está colocando ao seu nível.
Os EUA estão em recessão e endividados, enquanto outros crescem e acumulam poupanças extraordinárias.
As universidades norte-americanas e Hollywood perdem atractivo universal.
Sim, produziu-se uma impressionante deslocação de poder no que à economia se refere. Rússia, China, Índia e os países do Golfo gozam de economias em expansão, enquanto a dos Estados Unidos caiu num período de recessão. Durante os governos de Clinton e o primeiro de Bush, Washington costumava pregar ao resto do planeta sobre como manter em ordem as suas finanças, mas esse tipo de sermão soa agora um pouco falso depois da crise financeira americana do ano passado. A prova mais clara da mudança a que assistimos é o endividamento em que se encontram os Estados Unidos, enquanto muitos outros países estão acumulando reservas.
No futuro, as possibilidades dos Estados Unidos serão muito mais limitadas. Pode que ser que esta limitação provenha de certas alterações no equilíbrio do poder militar, mas sobretudo será devida a factores que têm mais a ver com o poder brando. Hoje, por exemplo, os chineses e os indianos exportam filmes; há estrelas de cinema coreanas que são famosas em toda a Ásia, e os japoneses são grandes produtores de cinema de animação. Em resumo, Hollywood já não é a única fonte de criatividade cultural no planeta.
Outra tendência especialmente preocupante é a diminuição de estudantes estrangeiros nas universidades americanas. Dissuadidos pela quantidade de obstáculos que encontram para entrar nos Estados Unidos, os estudantes estrangeiros têm preferido procurar alternativas em outras partes do mundo.
Consideremos agora um facto desconcertante: a despesa militar dos Estados Unidos é igual à soma dos gastos militares de todo o resto do mundo. E, sem dúvida, não conseguiram pacificar o Iraque nos cinco últimos anos desde que as tropas americanas invadiram e ocuparam o país. Constata-se assim que a força militar não é útil na hora em que é preciso criar as instituições legítimas sobre as quais assentam as nações, consolidar a vida política e estabilizar essa parte do mundo.
Durante as duas últimas décadas, países tradicionalmente aliados começaram a mostrar-se opostos à política americana. Formaram-se, por exemplo, alianças como a do Shanghai Cooperation Council, uma organização cujo objectivo é acabar com a presença americana na Ásia, incrementada depois do 11 de Setembro. E também não podem recorrer, com a mesma segurança que antes, aos seus aliados democráticos tradicionais.
Assim aconteceu no Iraque, como era de esperar; mas também no Afeganistão, onde, embora os seus aliados aceitassem a legitimidade da operação, arrastaram os pés na hora de apoiar com tropas e recursos materiais. E mesmo um país como a Coreia do Sul, que foi sempre um aliado, se viu convulsionado durante os dois últimos meses pelas manifestações contra os Estados Unidos desencadeadas por polémicas importações de carne.
Em resumo, o mundo com que se enfrentam hoje os Estados Unidos requer novos instrumentos. Têm que poder desenvolver e utilizar o poder duro, a força militar, mas também há outras maneiras de propagar aqueles valores e aquelas instituições que hão de ser a base da sua liderança no mundo. O trabalho realizado pelo Governo de Clinton nos Balcãs, na Somália e no Haití, no sentido de colaborar na construção de nações, foi muito criticado e apelidado de "trabalho social". Mas a realidade é que a política exterior americana deve interessar-se por certo tipo de trabalho social.
Quem se opõe ao domínio dos Estados Unidos no mundo - los Hermanos Musulmanes, Hamás, Hezbolá y Mahmud Ahmadineyad, no Próximo Oriente, assim como certos líderes populistas da América Latina como Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales – chegaram ao poder porque ofereceram serviços sociais aos mais pobres dos seus países.
Os Estados Unidos, pelo contrário, não têm oferecido nada neste sentido durante a passada geração. Oferecem mercado livre e democracia, duas coisas boas e importantes que constituem a base do crescimento e da ordem política. Mas nenhuma das duas parece atrair as populações mais pobres, que são, em definitivo, os autênticos eleitores nesta luta pelo poder e pela influência no mundo.
Não creio que o declínio americano seja inevitável. Os Estados Unidos têm muitos trunfos ganhadores em tecnologia, em competitividade, no mundo das empresas; contam com uns mercados laborais flexíveis e umas instituições financeiras, em princípio, fortes, ainda que temos de admitir que agora atravessam certas dificuldades. E uma das suas grandes vantagens é a sua capacidade para assimilar a gente de outros países e de outras culturas.
Praticamente, todos os países desenvolvidos atravessam um choque demográfico. As suas populações diminuem de ano para ano como consequência da baixíssima taxa de natalidade dos seus habitantes nativos. Desta forma, qualquer país desenvolvido que deseje continuar a crescer terá que acolher imigrantes procedentes de países e culturas diferentes, e creio que os Estados Unidos têm uma capacidade única neste sentido.
Mas há três pontos fracos sobre os quais os Estados Unidos hão-de trabalhar se quiserem sair airosos. Em primeiro lugar, a crescente perda de capacidade de acção do sector público; em segundo lugar, a maneira, demasiado auto complacente, de entender o resto do mundo, sempre desde a sua própria perspectiva; e, em terceiro lugar, a grande polarização do sistema político, que impede a procura de soluções para estes problemas.
Exemplo do primeiro é a péssima planificação da ocupação do Iraque e da guerra que lhe sucedeu. Outro, o desastre absoluto da resposta ao furacão Katrina.
O segundo ponto tem que ver com a arrogância norte-americana a respeito do resto do mundo. Quando em finais dos anos cinquenta, a União Soviética colocou no espaço o Sputnik, os Estados Unidos responderam ao desafio investindo massivamente em ciência e tecnologia. O resultado foi que os Estados Unidos se reafirmaram como líder mundial em tecnología. Do mesmo modo, poderiam ter respondido ao 11 de Setembro: investindo na sua capacidade para compreender a complexidade de regiões do mundo como o Médio Oriente. Por exemplo, é um escândalo que a Embaixada americana em Bagdad só conte com um punhado de funcionários que falem árabe correctamente.
O último ponto que haveria que resolver é o impasse em que se encontra o sistema político devido à polarização. A direita recusa falar em subir os impostos a fim de financiar uns serviços públicos muito necessitados de injecção económica. E a esquerda recusa falar de questões como a privatização da Segurança Social ou o aumento da idade de reforma.
E nem a esquerda nem a direita têm tido a valentia política de sugerir uma subida dos impostos sobre o consumo energético, que é a maneira mais óbvia de solucionar a dependência do exterior e de impulsionar fontes alternativas.
Nenhum outro lugar do mundo beneficiará da política americana se os Estados Unidos continuarem a ser um país que só olha para o umbigo, incapaz de levar para a frente as políticas e medidas projectadas, e demasiado dividido para tomar decisões importantes. Tudo isto não só é prejudicial para os americanos, mas também para o resto do planeta.
Francis Fukuyama é autor de O fim da história e o último homem. Este texto é um extracto do discurso que fez em Santa Mónica em 21 de Junho. Tradução a partir da versão espanhola de Pilar Vázquez, por A. João Soares. © 2008, The American Interest. Distributed by Global Viewpoint / Tribune Media Services, Inc.
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