segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Irão – Uma história longa de final incerto

Bruno Cardoso Reis. IEEI (Transcrito da publicação online do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais)

Perceber o Irão actual, implica perceber que este é o nome oficial da velha Pérsia – uma civilização milenar, com uma história imperial repleta, de que os iranianos muito se orgulham. Nessa história, no entanto, o século XIX e XX são marcados pela mancha da decadência e da dominação por potências externas, como a Grã-Bretanha e os EUA.

O actual regime iraniano – a República Islâmica – foi fundada há precisamente trinta anos atrás, em 1979, tendo como um dos principais pontos da sua agenda vingar e inverter essa humilhação. Do PREC no Irão saíram vitoriosos os radicais, os inimigos jurados dos EUA. As palavras de ordem preferidas dos milhões cujas manifestações cada vez maiores, apesar da repressão, acabaram por derrubar o xá Pahlavi, eram precisamente: «Mag-Bar Shah! Mag-Bar Amerika!» – ou seja – «Abaixo o xá! Abaixo a América!».

Mas estas não foram as primeiras manifestações da história do Irão. Em 1953, na crise que acabou com o derrube de Mossadegh, o primeiro-ministro nacionalista e populista que nacionalizou o petróleo iraniano, foi uma acção concertada da CIA e dos serviços secretos britânicos que levou ao desencadear de manifestações e de um golpe militar que acabou com a queda de Mossadegh. Esse facto continua a ser um marco fundamental da história do Irão. Mais, nos anos iniciais do regime islâmico, liderado por Khomeini, as relações com os EUA foram ainda azedadas, por culpa de excessos revolucionários iranianos, como a tomada como reféns de todo o pessoal da embaixada norte-americana em Teerão em 1979 – que acabou por contribuir para a derrota de Carter face a Reagan – ou o apoio a grupos terroristas hostis aos Ocidente. Mas também os EUA tiveram um papel nisso, ao apoiarem não só o Iraque de Saddam Hussein contra o Irão, na guerra iniciada pelo primeiro; mas também aparentemente apoiando grupos terroristas iranianos, como os Mujaheddin do Povo, que desencadearam uma campanha brutal no interior do Irão ou abatendo acidentalmente um avião de passageiros iraniano sobre o Golfo Pérsico. Que importância tem isso hoje? Muita. O Presidente Ahmadinejad fez parte da associação de estudantes que organizou a ocupação da Embaixada dos EUA. O Guia Supremo Ali Khamenei sobreviveu por pouco a um desses atentados terroristas nos anos 80.

Não é por acaso que a Grã-Bretanha é acusada de planear as actuais manifestações. É claro o desejo de evocar memórias de 1953. Mas talvez essa escolha de inimigos também traduza uma mudança. Há uma nova geração de iranianos a entrar na política e a eleição de Barack Obama parece ter tornado mais difícil vender no Irão a imagem dos EUA como o Grande Satã contra o qual o regime islâmico precisa estar em eterna vigilância.

Tal como na crise de 1953 e na de 1979, o que torna os acontecimentos actuais no Irão tão importantes é o facto de eles traduzirem não apenas uma batalha pelo controlo “da rua” em manifestações populares. Esta é também uma crise que atinge e divide as elites do regime. O Guia Supremo Khamenei parece alinhar com o Presidente Ahmadinejad, mas, aparentemente, o segundo homem mais poderoso do Irão, Hashemi Rafsanjani, que lidera o Conselho de Discernimento e o Conselho de Guardiões tende a alinhar com o candidato Mir Mousavi.

Claro que os dois grupos não têm o mesmo peso. Khamenei tem claramente mais trunfos na manga, em particular o controlo último das forças armadas e das forças de segurança. Mas uma ruptura total com a ala reformista do regime poderá ser complicada, quer em termos institucionais, pois há elementos reformistas em posições importantes, quer também pelo impacto negativo, tanto interna como externamente.

Papel decisivo no desenrolar da crise terá, evidentemente, a força armada, mas também o Conselho de Guardiões, que tem um papel fundamental em questões de legitimação política. É possível que Khamenei use a crise para eliminar complemente qualquer veleidade de independência face a si no interior do regime, afastando ou humilhando Rafsanjani – que foi violentamente atacado por Ahmadinejad – até como forma de preparar o terreno para que os conservadores controlem plenamente a sua sucessão. Mas pode também acontecer que um compromisso de algum tipo seja considerado necessário.

É importante, porém, sem ignorar a força do reformismo de Mousavi, por exemplo entre a juventude educada urbana, não esquecer que Ahmadinejad também tem importantes apoios populares. Há indícios de fraude – uma contagem invulgarmente rápida, e sobretudo resultados uniformes em todas as partes do país, uma uniformidade inédita não apenas no Irão, mas em qualquer parte do mundo. Mais, tal desmentiria a ideia de todos os analistas de uma profunda divisão entre voto urbano, mais reformista, e voto rural, mais conservador, bem como de importantes divisões regionais e até étnicas e religiosas no Irão – com árabes e sunitas no sul, por exemplo, e azeris no norte. Apesar disto, seria errado pensar que Ahmadinejad não tem apoio. Goste-se ou não do seu populismo nacionalista, ele tem muito poder de atracção num país com a história do Irão.


O Ocidente e a Crise

O Ocidente – e em particular os Estados Unidos – têm nesta crise um papel muito delicado, que exige escolhas difíceis. Mas se há algo claro nesta crise, é que ela será, no seu essencial, resolvida internamente.

Ficar relativamente à margem parece ser a opção de Obama. Tal poderá ser o mais sensato tendo em conta o que se passou em 1953 e 1979, e a marca negativa que esses acontecimentos deixaram no Irão. Apoios demasiado abertos do Ocidente à oposição reformista podem ser ter efeitos contraproducentes, tornando mais fácil reprimi-la como uma ameaça externa ao regime. Por outro lado, o Ocidente dificilmente poderá deixar cair correntes políticas com alguma simpatia pelo Ocidente, apostadas em reforçar a componente democrática no Irão, e publicamente comprometidas em melhorar as relações do país com o exterior.

O impacto da crise na questão nuclear é o ponto mais importante para os Estados Unidos, mas é também o mais difícil. Aqui, importa recordar que o Irão é um país orgulhoso, com uma história milenar que sente que o lugar que lhe é devido entre as grandes potências lhe tem sido negado. Ahmadinejad, num dos debates eleitorais, acusou Mir Mousavi de querer repetir a política pró-Ocidental do seu antecessor, o presidente Khatami, que estendeu a mão ao Ocidente, ajudou os EUA no Afeganistão e no Iraque, mas a resposta a esses gestos de reconciliação foi novamente a humilhação do Irão, com George W. Bush a incluí-lo na lista de Estados párias do chamado “Eixo do Mal”. Ahmadinejad apresenta-se como um nacionalista iraniano que não se deixa amedrontar pelos EUA ou por Israel. Por tudo isto, Mousavi, mesmo que alcançasse a presidência ou algum tipo de acordo, até por causa do Guia Supremo, dificilmente poderia defender uma política totalmente oposta à actual na questão nuclear, como aliás ficou claro na cautela das suas afirmações eleitorais.

A política cautelosa de Obama face ao Irão parece, portanto, ao contrário do que alguns críticos têm afirmado, especialmente apropriada para este momento difícil. É essencial, pública e privadamente, que Washington garanta à liderança iraniana que, ao contrário de 1953, os EUA não estão apostados numa mudança de regime. Mas ao mesmo tempo deverão insistir publicamente e nos bastidores que é essencial algum tipo de acordo entre os dois grupos que se digladiam no Irão. Dividir para reinar não seria talvez mal pensado do ponto de vista dos interesses dos EUA, mas nem por isso será fácil de obter.

Sobretudo, seria importante para Washington tentar aproveitar este momento de maior fragilidade na legitimação do regime islâmico para oferecer ao Guia Supremo Khamenei a possibilidade de pleno reconhecimento internacional, o termo completo das sanções, e investimento ocidental em troca de garantias quanto a um acordo com os reformadores, mas também de que o programa nuclear seria plenamente revelado e inspeccionado internacionalmente, e sobretudo de que acabaria o programa de enriquecimento de urânio.

Seria também importante Washington coordenar políticas com a UE, e, se possível, a China e a Rússia, assim como com outras potências regionais, para evitar suspeitas de que os reformistas são um cavalo de Tróia de norte-americano. O grande problema colocado pelo programa nuclear iraniano a todas as potências nucleares e aos Estados vizinhos é a possibilidade de uma corrida ao nuclear numa região como o Médio Oriente. Se este esforço de coordenação diplomática for feito pelos EUA, mesmo que venha a acontecer um trágico esmagamento dos reformadores nos Irão, Obama mais facilmente poderá obter apoio para sanções e outras medidas muito duras para impedir um Irão nuclear. Um regime iraniano radicalizado será mais fácil de isolar internacionalmente.


Para saber mais...

BBC – Iran Crisis

GR Afkhami, The Life and Times of the Shah (California UP, 2008)

Baqer Moin, Khomeini: The Life of the Ayatollah (IB Taurus, 1999)

Ray Takeyh, Hidden Iran: Paradox and Power in the Islamic Republic (Holt, 2007)

Stephen Kinzer, Os Homens do Xá: O Golpe no Irão e as Origens do Terrorismo no Médio Oriente (Tinta da China, 2007)

Ray Takeyh, Guardians of the Revolution: Iran and the World in the Age of the Ayatollahs (Oxford UP, 2009)

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