terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O circo actual e «Todo o mundo e ninguém»

Transcrição do artigo de opinião do Jornal de Notícias, seguindo de NOTA:

O palhaço
JN. 091214. 00h30m. Por Mário Crespo

O palhaço compra empresas de alta tecnologia em Puerto Rico por milhões, vende-as em Marrocos por uma caixa de robalos e fica com o troco. E diz que não fez nada.

O palhaço compra acções não cotadas e num ano consegue que rendam 147,5 por cento. E acha bem.

O palhaço escuta as conversas dos outros e diz que está a ser escutado. O palhaço é um mentiroso.

O palhaço quer sempre maiorias. Absolutas. O palhaço é absoluto. O palhaço é quem nos faz abster. Ou votar em branco. Ou escrever no boletim de voto que não gostamos de palhaços. O palhaço coloca notícias nos jornais. O palhaço torna-nos descrentes.

Um palhaço é igual a outro palhaço. E a outro. E são iguais entre si.

O palhaço mete medo. Porque está em todo o lado. E ataca sempre que pode. E ataca sempre que o mandam. Sempre às escondidas. Seja a dar pontapés nas costas de agricultores de milho transgénico seja a desviar as atenções para os ruídos de fundo. Seja a instaurar processos. Seja a arquivar processos.

Porque o palhaço é só ruído de fundo. Pagam-lhe para ser isso com fundos públicos.

E ele vende-se por isso. Por qualquer preço. O palhaço é cobarde. É um cobarde impiedoso. É sempre desalmado quando espuma ofensas ou quando tapa a cara e ataca agricultores. Depois diz que não fez nada. Ou pede desculpa.

O palhaço não tem vergonha. O palhaço está em comissões que tiram conclusões. Depois diz que não concluiu. E esconde-se atrás dos outros vociferando insultos.

O palhaço porta-se como um labrego no Parlamento, como um boçal nos conselhos de administração e é grosseiro nas entrevistas.

O palhaço está nas escolas a ensinar palhaçadas. E nos tribunais. Também. O palhaço não tem género. Por isso, para ele, o género não conta. Tem o género que o mandam ter. Ou que lhe convém.

Por isso pode casar com qualquer género. E fingir que tem género. Ou que não o tem.

O palhaço faz mal orçamentos. E depois rectifica-os. E diz que não dá dinheiro para desvarios. E depois dá. Porque o mandaram dar. E o palhaço cumpre. E o palhaço nacionaliza bancos e fica com o dinheiro dos depositantes. Mas deixa depositantes na rua. Sem dinheiro. A fazerem figura de palhaços pobres. O palhaço rouba. Dinheiro público.

E quando se vê que roubou, quer que se diga que não roubou. Quer que se finja que não se viu nada.

Depois diz que quem viu o insulta. Porque viu o que não devia ver.

O palhaço é ruído de fundo que há-de acabar como todo o mal.

Mas antes ainda vai viabilizar orçamentos e centros comerciais em cima de reservas da natureza, ocupar bancos e construir comboios que ninguém quer. Vai destruir estádios que construiu e que afinal ninguém queria. E vai fazer muito barulho com as suas pandeiretas digitais saracoteando-se em palhaçadas por comissões parlamentares, comarcas, ordens, jornais, gabinetes e presidências, conselhos e igrejas, escolas e asilos, roubando e violando porque acha que o pode fazer. Porque acha que é regimental e normal agredir violar e roubar.

E com isto o palhaço tem vindo a crescer e a ocupar espaço e a perder cada vez mais vergonha. O palhaço é inimputável. Porque não lhe tem acontecido nada desde que conseguiu uma passagem administrativa ou aprendeu o inglês dos técnicos e se tornou político. Este é o país do palhaço.
Nós é que estamos a mais. E continuaremos a mais enquanto o deixarmos cá estar. A escolha é simples.

Ou nós, ou o palhaço.

NOTA: Independentemente de se concordar ou discordar das opiniões de Mário Crespo ,ele é um artista no uso das palavras e na argúcia com que observa as realidades que o cercam.

Esta crónica tem o dom de nos transportar aos escritos de Gil Vicente fazendo recordar a peça «Todo o mundo e Ninguém», por exemplo, de que retiro como exemplo a parte em que diz que TODO O MUNDO é mentiroso e NINGUÉM fala verdade. Estas duas personagens repetem até ao fim da obra a sua dicotomia.

Agora Mário Crespo, sem citar nenhuma destas personagens nem outras, deixa ao leitor a a liberdade de pessoalizar uma personagem VIRTUAL que é apenas RUÍDO DE FUNDO, um fantasma incorpóreo, que não é TODO O MUNDO e que NINGUÉM quer sê-lo.

Talvez haja leitores atrevidos que queiram pessoalizar o ruído de fundo. Mas estou certo que NINGUÉM irá crucificar Mário Crespo por que NINGUÉM vai enfiar a carapuça. TODO O MUNDO se considera alheio a tais palhaçadas.

Parabéns ao Mário Crespo porque no circo emparelha bem com os palhaços, na sua arte de equilibrista e contorcionista no sábio uso das palavras.

2 comentários:

Anónimo disse...

Só não se entende é a sua declaração de intenções de gostar ou não gostar de Mário Crespo. Se o artigo é bom (e é) use-o. Esqueça as suas paixões pessoais. Há coisas mais importante e Crespo ilustrou-as magistralmente.

A. João Soares disse...

Anónimo,

Então não é isso que aqui vê? Há ao longo destas páginas muita literatura do Mário Crespo, um observador muito atento e arguto daquilo que se passa e, o que não é muito frequente, cauteloso nas palavras e elegante na escrita.
TODO O MUNDO fica cativo das suas palavras e NINGUÉM encontra pretexto para se queixar, tal a forma como se refere aos factos.

João Soares