Transcrição seguida de NOTA:
Da tragédia à comédia
CM. 15 Abril 2010. Por Rui Rangel, Juiz Desembargador
O Código de Execução de Penas, que acaba de entrar em vigor por vontade política exclusiva do Governo, faz-me lembrar a tragédia e comédia gregas, quando se interroga sobre as razões pelas quais a civilização grega sucumbiu ao contrapor-se a uma distinta maneira de conceber o homem, a justiça, o mundo e a vida.
A tragédia deste novo Código está na persistência do legislador que, por teimosia e por interesses pouco transparentes, insiste na desjudicialização da justiça, capturando actos que só podem ser praticados por um juiz, para entregar a órgãos administrativos de confiança política. A comédia (ainda que trágica), não sendo o legislador louco, só é suportável pelo riso que provoca, quando se atribui competência ao Director-Geral das Cadeias para decidir pela colocação de um recluso em regime aberto no exterior da prisão.
Este órgão administrativo, nomeado por confiança política, decide da liberdade de alguém condenado pela prática de crimes graves, designadamente os chamados crimes de sangue, sem restrição, sem custódia e sem qualquer controlo no exterior. Aquilo que era uma excepção, o regime aberto no exterior da cadeia sob controlo judicial, passa a regra, como um direito do condenado e, ainda por cima, por decisão administrativa. Ultrapassam-se os poderes e a decisão de dois juízes, o da condenação e o da execução, permitindo que a decisão que condenou o criminoso numa pena de vinte anos seja alterada, por via administrativa, logo que este tenha atingido um quarto da pena. Trata-se de mais uma medida inoportuna, considerando o momento conturbado que vive a justiça e a insegurança gerada pela reforma das leis penais que, com a modificação do regime da prisão preventiva, obrigou a libertar muitos detidos.
Quando se coloca um criminoso no regime aberto, no exterior da cadeia, dando-lhe liberdade para passar o dia fora, está tudo em jogo: a protecção da vítima, a manutenção da paz e da ordem social, os mecanismos de reintegração social. Como é que se pode entregar esta competência importante ao Director-Geral das Cadeias, que não tem sensibilidade, formação e um estatuto de independência e de isenção para apreciar estas matérias? E não se diga que esta decisão passa pelo crivo do MP para apreciar da sua legalidade.
É uma apreciação frouxa e sem grande relevo porque, em caso de discordância, o recurso não suspende os efeitos da decisão administrativa, acabando o preso por gozar automaticamente desta medida, podendo, se quiser, evadir-se de vez e ir a banhos, não com o Director, mas com a sua decisão. No limite, se for um colega de partido que esteja preso até dá jeito, passa a gozar de liberdade até ao fim da pena ou até poder beneficiar de liberdade condicional. E é também uma boa forma de gerir o excesso de população prisional de acordo com o orçamento disponível. Completa indignidade para o Estado de Direito e para a vítima e total humilhação para os Tribunais.
NOTA: Há quem receie o «Controlo do poder judicial pelo poder político?» mas parece que, além do controlo, há que temer a neutralização das decisões da Justiça, tornando esta numa actividade burocrática apenas «para inglês ver». Disto não poderá resultar benefício para a sociedade em geral.
Sendo a Justiça um dos pilares da sociedade, e um dos motivos actuais de maior preocupação dos cidadãos, mesmo para um leigo, isto parece extrema arrogância, abuso do poder, insensatez, falta de sentido de Estado, de ética, de respeito pelos cidadãos bem comportados e que desejam paz e segurança. Não parece aceitável que raciocínios financeiros possam levar a esta situação dramática, quando se desperdiça tanto dinheiro com remunerações «obscenas» a gestores públicos, e com tantos assessores inúteis (não impedem os repetidos erros do Governo que se vê obrigado a recuos frequentes).
A Decisão do TEDH (402)
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