Contra o branqueamento do 5 de Outubro
Transcrição de entrevista com o historiador Rui Ramos. No Destak. 100929. Por Isabel Stilwell. EDITORIAL@DESTAK.PT
Um dos nossos mais prestigiados historiadores, especialista na história política portuguesa do fim das guerras liberais à consolidação do Estado Novo, tem levantado a voz contra «a forma como nos andam a vender o regime saído do 5 de Outubro». «Ao arrepio de toda a investigação histórica», acusa. Ao Destak, explica o que foi a I República e como não há razões nenhumas para celebrar a traição do verdadeiro ideal de república.
As suas posições sobre as comemorações do 5 de Outubro de 1910 têm sido polémicas. Acha que estão a branquear os factos?
O que é polémico não são o que chama «as minhas posições», mas a forma como nos andam a vender o regime saído do 5 de Outubro. Imagine que alguém falava do Salazar mencionando apenas as barragens, o abono de família, a neutralidade na segunda guerra mundial, sem jamais referir a PIDE, a censura, a guerra colonial. Está a imaginar a gritaria que já não iria para aí? Pois é o que temos visto sobre o domínio da vida pública portuguesa pelo Partido Republicano depois de 1910: nada sobre a retirada do direito de voto à maioria da população, nada sobre a negação do direito de voto às mulheres, nada sobre o "empastelamento" e apreensão dos jornais, nada sobre a política de genocídio no sul de Angola, e o menos possível sobre a perseguição ao clero e aos sindicatos. É esse branqueamento, ao arrepio de toda a investigação histórica, que é polémico. Porque a verdade é que se voltássemos aos tempos de Afonso Costa, a maioria dos portugueses de hoje teria um choque tão grande como se voltássemos aos tempos de Salazar.
O que era a monarquia constitucional?
A monarquia constitucional, governada pelos liberais, foi o regime político que nos últimos 200 anos mais tempo durou em Portugal, e não por acaso. Os liberais conseguiram um equilíbrio de correntes políticas que ressalvou o pluralismo e a liberdade e extinguiu a violência política, alargou a participação eleitoral dos cidadãos ao mais alto nível antes de 1975, e criou condições para períodos de grande prosperidade. Mas atenção: a governação liberal não instalou uma democracia, não conseguiu resolver o problema do desenvolvimento sustentado a longo prazo, gerou desequilíbrios financeiros graves e no fim tinha entrado numa crise política aparentemente sem remédio. Se devemos criticar o branqueamento da república, não devemos omitir os impasses a que chegara o regime anterior.
A situação política antes do 5 de Outubro era complicada. A monarquia foi boicotada pelos próprios monárquicos?
Não havia monárquicos. A chamada monarquia era governada por políticos que se classificavam a si próprios como "liberais", e raramente como "monárquicos". Os liberais eram "republicanos teóricos", isto é, consideravam a república a melhor forma de regime, e só aceitavam a monarquia provisoriamente, porque pensavam que os portugueses ainda não estavam suficientemente instruídos para se governarem a si próprios. A monarquia era apenas um expediente, até ver. Por isso, os liberais nunca cultivaram qualquer espécie de fidelidade à dinastia. Pelo contrário. Aqueles a quem as opções do rei desagradavam habituaram-se a atacá-lo e a ameaçá-lo com uma revolução. Em 1910, tudo isso tinha chegado a um ponto extremo. Os políticos detestavam D. Manuel e a rainha D. Amélia. Repare: quando os republicanos avançam, ninguém de facto defende a monarquia.
O Partido Republicano tinha lugar nas Cortes e concorria a eleições livres. O 5 de Outubro foi um golpe de Estado?
Foi uma sublevação militar, apoiada por civis, que só pode ser compreendida no contexto da crise da monarquia constitucional no ano de 1910. Em Junho desse ano, o rei D. Manuel tinha concedido o governo à esquerda liberal. Isso irritou a direita conservadora, que se divorciou do regime. Alguns republicanos decidiram apoiar o governo contra os conservadores; outros, porém, viram uma oportunidade para derrubar o regime, já que sabiam que a direita conservadora não defenderia a monarquia. Foi o que aconteceu. Os republicanos não derrubaram um regime próspero e estável. O que verdadeiramente fizeram, em 5 de Outubro, foi preencher um vazio de poder. Nesse momento, ninguém estava certo do tipo de república que viria. Havia quem esperasse um regime tolerante.
A facção que ficou no poder era a mais radical?
Aquilo a que é costume chamar I República corresponde ao domínio do País pelos militantes do chamado Partido Republicano. Depois de tomar o poder, em 1910, esse partido dividiu-se no ano seguinte e, a pouco e pouco, o novo regime passou a ser hegemonizado pela facção dirigida por Afonso Costa. O problema da república esteve nesta hegemonia. Aquilo que tornou o regime odioso para muitos esteve no monopólio do poder por um partido que excluía e perseguia todos os outros da maneira mais violenta. Essa política de sectarismo brutal de Afonso Costa e do seu partido não teve só a Igreja ou os defensores de uma restauração da monarquia como vítimas, mas também o movimento sindical e sobretudo os outros republicanos. Muitos republicanos, na chamada "direita republicana", acreditavam que era possível e necessário fazer outro tipo de república, aberta a todos os portugueses. Era o caso, por exemplo, do primeiro Presidente da República, Manuel de Arriaga, um homem decente, obrigado a resignar o mandato e enxovalhado. É importante lembrar que entre os republicanos que mais combateram Afonso Costa e o seu partido estiveram precisamente os que fizeram o 5 de Outubro: Machado Santos, o herói da Rotunda, e José Carlos da Maia, que comandou a tomada do couraçado D. Carlos. Por causa disso, foram assassinados na "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921.
Diz que, se o que se pretende celebrar é o ideal de República, se escolheu a data errada. Porquê?
Porque o ideal da república não começou com o 5 de Outubro nem se reduz ao Partido Republicano, nem a haver um chefe de Estado eleito. Pelo contrário: em muitos aspectos fundamentais, o domínio do Partido Republicano foi a negação completa desse ideal.
O primeiro-ministro vai inaugurar nesse dia 100 escolas - a educação é, de facto, a bandeira da I República?
A assimilação entre a educação e o monopólio do poder pelo Partido Republicano não faz sentido. Todos os regimes dos últimos 200 anos quiseram escolarizar os portugueses. O Partido Republicano distinguiu-se por ter sido o que menos fez por isso. Não por qualquer intenção obscurantista, mas porque não teve meios para grandes investimentos públicos. A sua grande bandeira, depois do anti-clericalismo, foi a ortodoxia financeira. Para além de Salazar, Afonso Costa foi o único governante português do século XX a apresentar um orçamento sem défice. A melhor maneira de o primeiro-ministro celebrar a hegemonia sectária e intolerante do Partido Republicano, se é isso que quer, seria com um orçamento fortemente restritivo, à Afonso Costa.
Defende que quando se percebeu que a I República não tinha nada que ver com a democracia pós-25 de Abril, isso cortou as pernas às comemorações. Acha que as pessoas perceberam isso, ou que simplesmente estão com a cabeça na crise?
Provavelmente, tudo isso. Por um lado, todos viram esta coisa aberrante que é estarmos a celebrar como exemplo e inspiração para o futuro um regime de exclusivismo partidário que, quando as pessoas começaram a ler coisas sobre a época percebem que é estranho a princípios básicos do regime actual. Por outro lado, creio que todos sentimos, da parte dos mais exaltados manipuladores do centenário, um mau hálito sectário, a que já não estávamos habituados: para alguns deles, basta alguém expor o que honesta e rigorosamente investigou sobre uma época histórica para o acusarem de "fascista", "monárquico", "clerical" e não sei que mais crimes e pecados mortais. A comemoração está a ser explorada por aqueles que querem substituir o sistema científico de debate por um regime de suspeição política, de caça às bruxas, de agressão pessoal. Isso acabou por tornar toda esta celebração bafienta e antipática. É como descer a uma cave há muito tempo fechada e sem ventilação, onde só vivem coisas que se dão bem com o bolor e a podridão.
Mas, então, quem é que acredita estar tão interessado em comemorar a I República?
As esquerdas no século XX foram quem pior disse da I República. Enquanto foram marxistas, trataram os velhos republicanos como burgueses ou "pequeno-burgueses", que se tinham distraído com perseguições à Igreja e até combatido a "classe operária", em vez de destruírem o capitalismo e implantarem o socialismo em Portugal. Só depois de terem deixado de ser marxistas, com o fracasso das ditaduras comunistas na Europa, é que importaram a política de guerra cultural da América do Norte. Foi por essa via que descobriram uma admiração pelo sectarismo anticlerical dos republicanos radicais de 1910. Os mais facciosos estão a tentar perverter as comemorações no sentido de identificar a actual democracia com essa tradição velha e já morta, de modo a poderem tratar como marginais e sob suspeita todos aqueles que, por vários motivos, não estão dispostos a dar vivas ao defunto.
A rainha D. Amélia e muitos com ela argumentavam que o povo não queria a República, que lhes foi imposta. Fazia sentido um referendo?
O "povo" em Portugal nunca foi e não é único. Havia povo que queria a República, e até a República que existiu, e havia povo que não queria. Temos de nos habituar à ideia de que vivemos num país plural, que os portugueses com direito a Portugal não são só aqueles que pensam como nós. Esta comemoração revelou que esse simples princípio de decência e respeito ainda não iluminou algumas cabeças mais primitivas. Mas, atenção: o actual regime democrático nada tem a ver, felizmente, com o domínio exclusivista e repressor do Partido Republicano. É mesmo o contrário daquilo que existiu em Portugal nesse tempo. Nós hoje vivemos em democracia, o sufrágio é universal, as eleições são livres, há rotação no poder por via eleitoral, etc. Creio que isso é o mais importante para a maioria dos cidadãos.
Nome Rui Ramos
Profissão Historiador, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Marco Importante Doutoramento em Oxford
Livros Coordenou a mais recente História de Portugal, escreveu a biografia de D. Carlos, entre muitos outros.
Época Histórica Favorita História política nacional entre 1834 e 1936 (fim das guerras liberais ao Estado Novo).
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2 comentários:
(...) Vivemos num ambiente espesso de mentiras.
Um dos maiores sintomas da debilidade nacional é o receio de encarar a verdade, frente a frente. Uma espécie de letargia colectiva furta-nos a razão ao contacto das próprias realidades. Comecemos, pois, por dizer a verdade nua e crua. Lançando os olhos para os aspectos mais flagrantes da crise nacional, ressaltam logo os sintomas duma situação económica terrível. A carestia da vida nacional aumenta sem cessar. Os géneros escasseiam ou são falsificados. As relações entre consumidores e comerciantes tornam-se a cada passo do lado dos primeiros em assalto ao produto e duma grande parte dos segundos em especulação desenfreada, pelo açambarcamento e o uso dos ilegítimos processos para enriquecer depressa. Daí o agravamento do pauperismo até à miséria extrema dum lado e do outro estadear dum luxo delirante.
Se olharmos aos aspectos da vida social, não é menor a crise. A luta de classes assume com frequência um carácter de irredutibilidade e ódio. As greves sucedem-se, entremeadas de episódios sangrentos. As classes médias e as profissões liberais debatem-se em condições precaríssimas de vida. A mortalidade infantil e os estragos pela tuberculose aumentam dia a dia. É um delírio de ganância, um insofrido desejo de exercer a esfera própria se apoderou de quase todas as classes sociais.
A essas duas crises liga-se logicamente uma crise moral profunda. Também aí não faltam os sintomas. A venalidade no exercício das funções dirigentes, o cinismo burlão de certos meios financeiros assumiram o aspecto da dissolução mais baixa. Muitos dos chamados órgãos da opinião pública estão claramente amordaçados pelas oligarquias do dinheiro. O jogo e a prostituição exacerbaram-se. Cresceu a vagabundagem infantil. Perdeu-se ou aviltou-se o sentimento religioso sem que o tenha substituído outro ideal humano, vasto e desinteressado. É uma descrença profunda de todos e de tudo, uma resignação apática e servil vão-se transformando, a pouco e pouco, na descida, de olhos e ouvidos tapados, para o fundo.
(…)
O antigo Portugal, sadio e forte, volveu-se num corpo de pigmeu, com uma cabeça imensa e desvairada. Ao fim caiu em puro autofagismo; devora-se a si próprio.
O parasitismo, eis o grande mal. E, como o trabalho é a condição da liberdade e sem verdadeira liberdade não há opinião pública, Portugal tornou-se um viveiro de oligarquias: à cobiça duma dúzia subordinaram-se os interesses de seis milhões de portugueses.
(…)
Que têm feito ou o que fazem os politícos ?
Representantes duma sociedade em crise, enfermam em geral dos mesmos vícios. Continua a ser má a organização partidária da República. Aos partidos falta essencialmente a unidade moral e directiva que advém dos princípios. Os Governos, tantas vezes recrutados na mais irrisória das incompetências, iludem quase sempre com expedientes e modificações de superfície muitas das mais sagradas promessas feitas nos bons tempos . Sucedem-se uns aos outros e os problemas da maior urgência continuam insolúveis. Enquanto um partido ou um grupo de partidários diferentes está no poder, vêem-se os outros com frequência gastar todos os seus esforços em dispor a causa da laranja, que os há-de fazer tombar.
E o parlamento? Esse canta mas não produz: é a grande cigarra nacional, símbolo da falência colectiva.
Que espanta, assim, que a cadeia das mentiras e das contradições individuais ou colectivas tenha aumentado em cada passo?
(…)
Eis ao que chegámos. As outras nações voltam olhos atentos e inquietos para aqui.
(…)
A continuar assim, a pouco e pouco deslaçados a confiança, o respeito mútuo e a disciplina moral, o que nos espera? (...)
Artigo de Jaime Cortesão publicado 1921 na revista "Seara Nova"
Foi um gosto ler a entrevista a Rui Ramos e um espanto o artigo de Jaime Cortesão quando se pensa que foi escrito em 1921...
Abraço
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