terça-feira, 26 de outubro de 2010

Hugo Santos, Presente !

Transcrição de artigo que considero um óptimo texto:

Um homem exemplar
Inês Pedrosa (www.expresso.pt). Quarta feira, 20 de Outubro de 2010

Memória de um major de Abril que soube honrar a liberdade.

Para a Ju

O general Hugo dos Santos, um dos jovens militares responsáveis pela revolução de Abril de 1974, morreu no dia em que a República completou 100 anos. Nos dias anteriores, dissera à mulher que o acompanhou a vida inteira como queria que fosse o seu funeral: preocupava-o sobretudo não dar trabalho e desaparecer com discrição e simplicidade, qualidades que sempre cultivou. Pediu para ir vestido à civil, porque decidiu ser cremado - mais uma vez, a vontade de não incomodar a família - e, nas suas palavras, "a farda das Forças Armadas não é para queimar".

A sua morte passou quase despercebida, no meio da atmosfera desconcertantemente comemorativa deste centenário. Hugo não se importaria: gostava da paz, do riso, da música e do silêncio. Era um homem do convívio e da solidariedade, mas nunca de pompa e circunstância. Nunca foi tocado pela doença do narcisismo.

Tive a sorte de partilhar com ele um terno afilhado (no sentido filial do termo) e de contar com ele como um segundo pai, que me foi de extrema utilidade nos arroubos e inquietações da adolescência. Tinha uma disponibilidade imensa para os mais novos, que ouvia genuinamente, procurando entender, amparar, animar e estimular. Dava a camisa pelos amigos, e não exigia que os amigos tivessem as mesmas ideias que ele. Nunca o ouvi levantar a voz, mesmo quando lhe levantavam a voz a ele. Dizia o que tinha a dizer com uma urbanidade rara. Não suportava oportunistas, e tinha um faro infalível para os detectar.

O silêncio que acompanhou o desaparecimento deste exemplar major de abril foi ferido por declarações de Otelo Saraiva de Carvalho, que apareceu na TSF a acusar Hugo dos Santos de se ter "dessolidarizado" do Movimento das Forças Armadas, por se ter "desviado da perspectiva revolucionária", defendendo que, feita a revolução, os militares deviam "regressar aos quartéis".

Sim, a ideia de Hugo dos Santos era a de que a revolução pela qual arriscou a carreira, a vida e o grande amor - a mulher, Maria Júlia dos Santos - deveria ser entregue ao povo português, para que decidisse o seu futuro, através de eleições democráticas. Envolveu-se na conquista da liberdade sem nenhum objectivo de poder - rejeitaria qualquer ímpeto ditatorial como aquele que levou Otelo a assinar mandatos de captura em branco. Na hora da morte deste seu camarada de armas que estava de relações cortadas com ele, Otelo permitiu-se ainda acrescentar: "Sempre que era solicitado para entrevistas com outros oficiais que tivessem estado comigo no Posto de Comando, ele recusou sempre."

Sim, o Hugo não gostava de dar entrevistas, nem usava a primeira pessoa do singular majestático, pela boa e simples razão de que abominava o heroísmo autopublicitado. Ninguém o ouviu queixar-se quando, na sequência do 11 de Março de 1975, foi deportado para a Roménia de Ceausescu, como adido militar, talvez com o objectivo de que se convertesse aos esplendores do socialismo real.
Muitas e muitas vezes lhe perguntei quem tinha feito o quê na revolução, e o Hugo respondia-me que o que importava era que ela tivesse sido feita. Perante a minha insistência, explicou-me que todos se tinham comprometido a guardar segredo sobre as suas respectivas responsabilidades, pelo menos durante 25 anos, para que ninguém pudesse ser beneficiado ou prejudicado por causa disso.

Como escreveu Agustina, "o tempo é um fragor de multidão", e Hugo dos Santos tinha a lucidez de o compreender. Volvidos os tais 25 anos, voltei a perguntar-lhe, e o Hugo disse-me que continuava a ser cedo - já bastava o que bastava. Por isso se empenhou tanto naquele que foi o seu último serviço público, o de presidente da Comissão de Avaliação e Reconstituição das Carreiras Militares, para procurar corrigir as injustiças criadas pelos humores da política. Ao contrário de Otelo Saraiva de Carvalho, Hugo dos Santos nunca enjeitou nem sacudiu responsabilidades, mas sempre dispensou protagonismos.

Ao Hugo devo o exemplo muito concreto de valores fundamentais: rectidão, coragem, lealdade, frontalidade. Os fundamentos da liberdade. E a fé no amor: a relação de ternura cúmplice que a Ju e o Hugo mantiveram ao longo de quase 51 anos de casamento é qualquer coisa de inesquecível. Passei muitas e felizes temporadas de férias com eles, e nunca os ouvi discutir, uma vez que fosse. Os seus olhos conversavam e riam mutuamente; olhar para o modo como eles se entreolhavam, numa sala cheia de gente, era descobrir o amor como jóia verdadeira e eterna. E isso não tem preço, nem fim.

Inês Pedrosa escreve de acordo com a antiga ortografia
Texto publicado na revista Única de 16 de Outubro de 2010

Imagem de A. João Soares

1 comentário:

ONG ALERTA disse...

Na história podemos ver muitos homens assim, um abraço Lisette.