sábado, 12 de maio de 2007

Como eram as nossas aldeias?

Transcrevo este trabalho sugiro a consulta do link que vai no final, em homenagem aos muitos visitantes do interior, principalmente da Estremadura, que por aqui passam. Hoje, é difícil de compreender como se vivia nas aldeias do interior, principalmente do mais profundo.

Este artigo foi publicado no JORNAL REGIÃO DE LEIRIA, na edição de 10 de Maio de 2007 e é da autoria de MOISES ESPIRITO SANTO (Sociologo e professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa). Como o tema está na ordem do dia e na nossa região as aldeia estão quase todas mortas, resolvi transcreve-lo e também porque o tema é caro ao António Delgado e já foi motivo de postagens no seu Ecos e Comentários.

"Como explicar aos jovens de hoje o que eram as aldeias portuguesas há quarenta anos? Por algumas fotografias e sequências de filmes podemos ver casas, ruas, pessoas e cenas agrícolas, mas não mostram aquilo que fazia com que uma aldeia fosse um microcosmos da cultura, um espaço fortemente integrador com um intenso poder de investimento afectivo, e um estreito círculo de solidariedade (com muita desconfiança relativamente aos «de fora»).

Eram um mundo de trabalho, de paisagens agrícolas miscigenadas de hortas, vinhas e olivais com árvores frondosas à beira das estradas; um ambiente de cheiros a fumo de lareira, a feno colhido, a palha moída ou a mosto; miúdos a correr e a jogar; patuscadas nocturnas da rapaziada; abundante criação musical e poética; histórias de vida contadas na adega; mexericos de velhas; olhares furtivos à passagem dum estranho; forte controle social. A cultura aldeã dava para vários tratados sociológicos. Nos anos 60, grupos de estrangeiros de classe média passavam parte das férias em Portugal a observar o sistema social aldeão; mas não só as aldeias «típicas»: qualquer aldeia. Todas eram primorosas criações da cultura rural: casas e varandas convidativas, elegantemente modestas com briosos ajardinamentos, caminhos de terra tortuosos e sombrios propícios ao devaneio onírico e aos medos nocturnos, conversas à porta e à janela, uma forte ligação casa-trabalho-rua e muito sentido de hospitalidade para que os «os de fora» fiquem com «boa impressão da gente».

A criação musical e poética era simplesmente notável. Podemos ver uma amostra no livro «Cancioneiro de Entre Mar e Serra da Alta Estremadura», de José Ribeiro de Sousa (editado pela C.M. de Leiria, 2004). O autor, sem sair da Costa de Baixo (uma «metade» da Costa, a outra é Costa de Cima, da freguesia de Maceira) coligiu, desde os anos 40, 1.027 peças de música popular e respectivos poemas, sacros e profanos, para as mais variadas situações da vida: ciclos do pão, do vinho, do azeite e do pinhal; cantares da água, das fontes e do rio; cantigas da lavra, do semeador, da sacha, da rega, das colheitas e das eiras; ciclo festivo anual; cantares das profissões; loas de romaria, cantigas de namoro; cantares sobre a toponímia local, sobre a vida familiar e social, cantigas do bom e de mau humor e da reinação, romances e xácaras… só para dar um exemplo do que o meticuloso autor deixou para a posteridade ao longo de 1.251 páginas em papel bíblia belamente encadernadas. «Mas [diz o autor] a Costa de Baixo em fins do primeiro quartel do séc. XX era muito diferente da actual e tinha um aspecto impossível de reconstituir. A quase totalidade das casas ditas ‘rabudas’ (com alpendre ou varanda) foi demolida; as eiras e casas anexas, as adegas e lagares, palheiros e barracões levaram o mesmo caminho. As grandiosas árvores multicentenárias que bordejavam os caminhos foram cortadas. As típicas ruas foram alargadas e perderam a graça das sebes verdes. Houve uma substituição quase total do ‘fácies’ do belo lugar de então». E, digo eu, isto é válido para todo o País rural. Um mundo perdido.

De facto, a vida era cantada. Cantava-se em todas as tarefas dos campos e da casa, para esquecer o tempo, para encurtar os caminhos, para animar os acompanhantes e para vencer as agruras. As mulheres cantadeiras (eram sobretudo elas que cantavam) tinham mais procura junto dos fazendeiros pelo bom serviço que faziam de animar o rancho -. aliás, a poesia e a música aldeãs, tal como os contos e os rimances são criações das mulheres (já os instrumentos musicais são invenções de homens).

E, hoje, o que é uma aldeia? Um pequeno aglomerado de habitações - cada vez mais dispersas entre campos abandonados. Trabalho agrícola? Nada. Vida social? Nada. Criação cultural? Nada. Ninguém nas ruas. Solidão de fugir.

Li há dias nos jornais que, segundo um inquérito europeu, os portugueses são, hoje, o povo mais triste da Europa. Porquê? Para responder cabalmente a isso teríamos de começar pelas cidades". ALCOBAÇA: Gentes e Frentes

4 comentários:

A. João Soares disse...

Muito interessante este texto e de elogiar a iniciativa de lhe dar publicidade. Pela minha parte, ousei transcrever pra o Do Mirante.
Mas, para lá destes aspectos sociológicos, g+havia as precárias condições de vida, no tocante a falta de comodidades e de higiene. Cresci numa aldeia sem luz eléctrica e tinha de recorrer ao petróleo para estudar e fazer os trabalhos de casa. Não havia água canalizada nem saneamento. O rés-do -chão era a habitação de bois porcos e cabras.
Mas havia o sentimento de vizinhança, de interactividade, de entreajuda, um ombro e um braço para apoio do amigo. Hoje há hermetismo, indiferença ao outro, competição na ostentação sem bases, inveja.
A evolução das tecnologias não foi acompanhada por uma evolução humana e social. Têm sido perdidos muitos valores que estão a fazer falta, segundo a óptica de quem os conheceu.
Abraço

o alquimista disse...

Eu faço reconstituições históricas e levo-as à cena...estas coisas encanta-me...

Um olhar prende o divino sonho, ganha asas num sorriso puro, esconde a dor em teu semblante, gira a roda do futuro.
Tal como um ribeiro manso, que corre pachorrento para sul, assim viaja o teu profundo sentir, aprisionado em…pranto azul…


Bom fim de semana


Mágico abraço

Jorge Casal disse...

Obrigado amigo João Soares por ter feito eco do artigo que transcrevi no Blog Alcobaça Gentes e Frentes, de Moisés Espírito Santo, extraído do Jornal de Leiria. Como diz, havia muito inconforto e falta de muitas coisas que pertencem à actual civilização. Se formos a ver, nas cidades também não havia o que hoje há. A iluminação eléctrica é recente; hoje há os computadores e a Internet enquanto nos bairros populares e nas aldeias havia uma cultura viva, de contactos directos e muita sociabilidade. As sociedades evoluem tecnologicamente para mais conforto e mais facilidade de vida, mas podem regredir em muitos aspectos importantes das respectivas culturas. Felicidades e bom trabalho para si e para os seus amigos bloggers.

A. João Soares disse...

Caros Alquimista e Jorge Casal,
Quanto às tecnologias, ninguém as desinventa. Elas estão aí para serem utilizadas e ultrapassadas por outras mais avançadas. Mas os aspectos sociológicos poderão regressar aos pontos bons de antigamente, através de grupos culturais que intensificam o relacionamento das pessoas e as conduz a agir em beneficio de objectivos comuns, e outras formas de convívio e solidariedade.
O homem não é totalmente mau, e é preciso melhorar o que é bom.

Um abraço