sábado, 15 de dezembro de 2007

O circo dos políticos, ou as cimeiras

O circo desceu à cidade
Por António Barreto, «Retrato da Semana» - «Público» de 9 de Dezembro de 2007

TRAPEZISTAS ANDRÓGINOS, papagaios alfabetos, palhaços pobres e ricos, tigres amestrados, magos e contorcionistas: há de tudo. Vieram por três dias, a cidade ficou em quarentena e, ansioso, o mundo espera por resultados. A meio da semana, tudo recomeça, mas só com um grupo selecto que vem assinar nos Jerónimos a inútil constituição europeia
alcunhada de Tratado.

CIMEIRA, tratado, declaração e estratégia: todas de Lisboa, para engrandecimento da pátria! Ao lado do Presidente da União Europeia, português de lei, o Presidente da Comissão, outro português de gema. Portugal, Lisboa e Sócrates saem deste rodopio famosos, prestigiados e com uma nova projecção internacional. Parece que o papel de Portugal no mundo foi assim reforçado. Que muitas novas oportunidades serão criadas. E que se deu um passo essencial na construção da paz e da segurança mundiais.

SERÁ NECESSÁRIO, para obter segurança, dialogar com criminosos, apertar a mão a torturadores, tratar quaisquer déspotas de democratas, esquecer guerras e fomes, deixar entre parêntesis a corrupção, alimentar a cleptocracia e debitar, com ar confiante, longos discursos de lugares-comuns optimistas congratulatórios? Será que o preço que tem de se pagar pela paz inclui a criação e a manutenção de uma Nomenclatura internacional imune, impune e "off shore"? Será que o próprio desta casta é o hotel de cinco estrelas, o caviar, os vintages caríssimos, a trufa branca e os aviões transformados em lupanares de luxo?

A CIDADE DE LISBOA, como qualquer outra nas mesmas circunstâncias, ficou em estado de sítio. Em qualquer canto da cidade, de repente, uns nervosos polícias mandam parar carros e desviar transeuntes, ou atiram para as bermas tudo o que vive, a fim de dar lugar a luzidias comitivas de topos de gama barulhentos e sirenes emproadas de importância. Estivéssemos nós sob ameaça nuclear e a diferença não seria grande: perímetros proibidos, áreas de segurança máxima, locais protegidos pela Armada e pela Força Aérea, centenas de gorilas mais ou menos disfarçados e milhares de soldados e polícias nas esquinas ou pendurados nos telhados. Dezenas de carros blindados transportam estes senhores do pavilhão para o hotel, do centro de congressos para a sala de jantar. A distância que os separa de pessoas normais mede-se em centenas ou milhares de metros. Têm medo de tudo, dos colegas, dos terroristas, dos opositores, dos criminosos, dos acidentes e das pessoas em geral. É cada vez mais o retrato da vida política actual: longe de todos, com receio de tudo. Mas com infinita arrogância.

É TRISTE O ESTADO a que chegou o mundo! Triste e irreversível. Se mudança houver, será para ainda pior. Os políticos vivem, deslocam-se, governam, reúnem e decidem como se fossem perseguidos, como se estivessem permanentemente cercados. Políticos, estrelas de cinema, bilionários e chefes da Máfia vivem assim. Rodeados de guarda-costas e protegidos por exércitos, são acompanhados por enormes comitivas a que não faltam médicos, enfermeiros, ambulâncias, cozinheiros, provadores, jornalistas e "escort services". Alguns não dispensam astrólogos, feiticeiros, psicólogos e "personal trainers". Os que, a exemplo de Sócrates, exigem correr ou fazer exercício mandaram reservar partes da cidade para poderem queimar toxinas e ser filmados em privado. Os políticos e seus poderosos equiparados vivem num mundo à parte, têm a sua própria geografia e governam-se pelas suas leis. De vez em quando, para serem filmados, esbulham o espaço público. A democracia trocou o Fórum e a Assembleia pela Nomenclatura e pela reserva de privilegiados. Os políticos olham para os povos como se estes fossem incómodos para as suas encenações. Mas os povos olham cada vez mais para os políticos como usurpadores e parasitas.

EM PORTUGAL, os próximos dias, semanas e meses, vão ser de intensa propaganda. As glórias do governo e de Sócrates serão equiparadas aos mais altos feitos da história. Tudo para o bem e a grandeza do país. A impecável organização dos festejos será elogiada por toda a gente. O discurso do Primeiro-ministro será mostrado como jóia rara e dele se dirá que ascendeu ao estatuto de líder mundial. Repetir-nos-ão, centenas de vezes, que Portugal está na linha da frente. Da paz, do diálogo, da cooperação, dos direitos humanos, da democracia, da ajuda ao desenvolvimento e da humanidade em geral. Pobre país que jubila com os cenários de pechisbeque, mas persiste na linha de trás da justiça, da produtividade, da educação e da desigualdade social!

DIZEM QUE OS CONFLITOS, quando atingem níveis insuportáveis, trazem a paz. Mas também dizem que as grandes festas de concórdia e espalhafato anunciam o conflito, a violência e a miséria. São coisas que se dizem...

NOTA: Transcrevo este artigo que considero um retrato em cores vivas de uma situação já aqui referida que muitos portugueses se recusam a observar com olhos bem abertos. Merece ser reconhecida a isenção do Prof António Barreto pela clarividência da análise e pela coragem de transmontano com que se exprime.
Os objectivos da cimeira foram conseguidos: Os políticos viajaram, conviveram banquetearam-se, discursaram em termos politicamente correctos, mostraram as suas vestes mais vistosas, obrigaram os vermes a privarem-se de viajar livremente nas ruas da sua cidade, evitaram os temas mais relacionados com a qualidade de vida das populações (direitos humanos, democracia, liberdade, etc.) e alguns mais espertos fizeram negócios com empresas multinacionais, as únicas beneficiadas por este circo, bem recheado de actores. E assim vai o mundo moderno!!!

4 comentários:

Amaral disse...

João
Perante este retrato tão bem traçado por AB nada mais a dizer.
Subscrevo igualmente o seu comentário.
Abraço

A. João Soares disse...

Amaral,
Portugal está a necessitar de muitos textos assim claros, directos e com carácter apartidário e isento.
AB trata temas que merecem ser realçados. Mas o povo, na sua grande maioria, só gosta de futebol e telenovelas. É preciso alertar para aquilo que realmente afecta a vida dos portugueses, porque o futuro do País depende de cada um e não podemos ficar à espera de um milagre que nos torne um Estado decente. O milagre tem de ser feito pelo esforço persistente e bem intencionado de todos. Ontem ao almoço uma senhora professora reformada disse que não se interessa pela política. Mas quando lhe perguntei se vota disse que sim, o que me fez perguntar em que baseia a sua decisão de voto. Ficou encavacada, mas a minha convicção é que ela, como a grande maioria do povo, vota da forma que lhe é aconselhado nas campanhas eleitorais pelo partido de que habitualmente gosta!!!
E assim vai o País pela rampa abaixo.
Abraço e bom Domingo

Anónimo disse...

Bem acertado este artigo do Barreto.
Este tratado foi uma festa histórica, mas sem cidadãos...

A. João Soares disse...

E assim se cria mais um centro de poder no mundo para impor as suas ideias e os interesses das multinacionais em todo o mundo... até que...
Um abraço