segunda-feira, 23 de junho de 2008

Zimbabwe, caso sintomático

Da antiga Rodésia do Sul chega-nos um exemplo de dignidade, de sentido de Estado, de dedicação à população do País, sentimentos que se sobrepõem à ambição do poder que é natural e compreensível num político.

O líder do Movimento para a Mudança Democrática, oposição no Zimbabwe, Morgan Tsvangirai, que na primeira volta das eleições presidenciais tinha obtido a maioria dos votos mas não maioria absoluta, pelo que teve de haver segunda volta, anunciou ontem em Harare que desiste de disputar com Robert Mugabe a segunda volta das presidenciais, depois de os partidários da Zanu-PF (no poder) terem, durante meses, intimidado e agredido apoiantes da oposição. Tomou tal decisão para poupar a vida dos seus apoiantes, "tendo em conta a inaceitável campanha sistemática de violência, de obstrução e de intimidação das autoridades zimbabwianas desde há algumas semanas."

"O povo quer um novo Zimbabwe. Mas não podemos pedir aos eleitores que arrisquem a sua vida para ir votar no dia 27 de Junho." "Não participaremos mais nesta farsa de processo eleitoral, marcado pela violência e ilegítimo". "Ele [Robert Mugabe] declarou a guerra ao afirmar que as balas prevaleceriam sobre os boletins de voto". E depois de dar a sua justificação de grande dignidade, apelou à ONU e às organizações pan-africanas para que intervenham a fim de evitar um "genocídio".

Na realidade, a violência no Zimbabwe não dura há apenas algumas semanas. Já faz tempo, e muito! Que o digam os que perderam familiares, mortos às mãos dos esbirros de Robert Mugabe, ou os que foram por eles espancados, seviciados, etc., etc. Que o digam os que perderam as casas, terras, ajuda alimentar porque não votaram no partido do Presidente.

E que fez o Ocidente? Que fez a UE? Que fizeram os Estados Unidos? Que fez a ONU? Muito pouco ou nada. Apenas ligeiras declarações de repúdio, de condenação e umas sanções que ninguém cumpre.

Isto faz meditar sobre as palavras de Mário Soares que na qualidade de presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, alertou que pode ocorrer uma guerra de civilizações se as religiões não forem um factor de paz. Segundo ele, «as religiões devem discutir umas com as outras. Todas têm a verdade revelada e quem tem a verdade revelada pensa que tem o exclusivo e por isso é difícil conjugar, mas tenho verificado em encontros ecuménicos que é possível encontrar pontos comuns e é isso que é preciso desenvolver». «O mundo está muito complicado. Se as religiões não forem um factor de paz, pode acontecer que se entre numa guerra de civilizações e isso seria o pior de tudo que pode acontecer».

Mas, parece que essa «guerra de civilizações» já ocorreu e a civilização ocidental ficou derrotada tal é a passividade com que tem assistido às atrocidades do ditador Robert Mugabe e outros que pululam pelo mundo. Quanto a Mugabe já há justificação suficiente para evitar um mal maior e mais vítimas, retirando-o para o exílio longe da sua terra e julgá-lo num tribunal internacional como foi feito a políticos e militares da ex-Jugoslávia, sem tantas culpas. Teria sido uma boa acção para o mundo por parte da ONU. Mas o que é a ONU? Para que serve?

Em vez de uma acção decisiva contra este ditador, a UE, apesar da sua apregoada moralidade democrática, tem continuado a abrir-lhe as suas portas e estender-lhe o tapete encarnado a ele e à sua estirpe - como aconteceu recentemente na cimeira da FAO em Roma. Mas, escandalosamente, o povo do Zimbabwe, porque tem a pouca sorte de habitar um país onde não existe petróleo e que, por isso, pouco conta para a Velha Europa e para o mundo, ainda não viu a Comunidade Internacional levantar um dedo, de forma eficaz, em defesa da sua sobrevivência, em paz, liberdade e com comida.

Só depois desta atitude de Tsanvigirai é que os Estados Unidos decidiram levar perante o Conselho de Segurança da ONU a situação política no Zimbabué, reconhecendo que "o regime de Mugabe reforça a cada dia a sua ilegitimidade. Os actos absurdos de violência contra a oposição e os observadores das eleições têm que terminar". "Os Estados Unidos preparam-se para ir no início da semana ao Conselho de Segurança para examinar as medidas suplementares que devem ser tomadas. Mugabe não pode ser infinitamente autorizado a reprimir o povo zimbabueano", adiantou a porta-voz da Casa Branca.

Entretanto, o presidente do Zimbawe já traçou os resultados da segunda volta das eleições presidenciais do próximo dia 27. "Só deixarei o poder quando tiver a certeza de que a terra fica na mão da maioria negra", diz Robert Mugabe. Garante aos seus apoiantes que "a terra roubada por colonizadores britânicos tem de ser devolvida aos seus proprietários, o povo negro", "enquanto isso não acontecer, terá de continuar a ser o presidente". Ou seja, "vou ganhar para evitar que os ingleses tomem conta do país". "Quando tiver a certeza de que a devolução da terra aos negros está verdadeiramente cumprida, então poderei dizer: o meu trabalho está terminado", afirma Mugabe, acrescentando que esse desiderato "nunca será possível com o país entregue ao MDC e a Morgan Tsvangirai".

Alguns títulos da imprensa de hoje sobre o tema:

Oposição zimbabwiana desiste das eleições
Zimbabué: EUA levam questão ao Conselho de Segurança ONU
Robert Mugabe ataca tudo e todos
Mário Soares alerta para risco de guerra de civilizações

3 comentários:

Pedro Pisco disse...

Caro Amigo,

Antes de mais, é um prazer passar por aqui após algum tempo de isolamento (meditação... eheheh).
Parece-me que aqui a questão é mais profunda.
Pergunto-me o que será melhor... Uns quantos perderem a vida e isso resultar numa viragem à democracia, ou uns quantos e mais quantos continuarem a perder a vida, sabe-se lá por quanto tempo mais, no regime actualmente existente?
Uma posição, certamente, dificil de tomar, mas que merece uma reflexão.
Reflicta-se nisto: E os que já perderam a vida, pelo homem que disistiu? Esses, perderam-na porquê e para quê? Ele desistiu...

Grande abraço.

Pedro

A. João Soares disse...

Pedro,
Eis o interesses dos blogs. Trocar opiniões, dúvidas, interrogações. Todos os problemas sociais, que mexem com colectividades muito numerosas, como a população de um País, merecem muita meditação. Nós por cá não dispomos de toda a informação. Mas parece que há problemas sérios no Zimbabué.

Longe vão os tempos em que ZANU e ZAPU se coligaram, unindo-se na Frente Patriótica co-presidida por Joshua Nkomo e Robert Mugabe. Havia ministros brancos sendo um deles o da Agricultura, Dennis Norman. Mugabe procurou evitar o êxodo em massa dos brancos. Ao fim do primeiro governo o PIB cresceu 7%.
Ultimamente o ditador começou a exagerar, para mal estar do povo.
Como será agora? As melhorias da vida do povo não serão visíveis a curto prazo. Havendo grande investimento nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança, não será fácil retirar Mugabe do Poder.
Veremos se o CS/ONU não vai ter mais um fracasso.
E, como é regra, quem sofre é o povo.
Cumprimentos
A. João Soares

Mondo Gatto disse...

Boa tarde!
Não tenho muito conhecimento da atual situação do Zimbabwe, mas vejo a crise de lá como sintomática e bem mais séria do que é mostrada. Não vejo melhorias nem a curto nem a médio prazo e obviamente, quem sofre com a falsa estabilidade é o povo. Nada muda, só gira em circulos repetitivos e castigantes... =[