sábado, 13 de junho de 2009

Memória de 13 de Junho de 1974

À hora marcada, estava no aeroporto da Portela para me juntar a um pequeno grupo que ia partir para Londres onde iria ter lugar um encontro entre representantes do poder Português com o PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Fazia-me acompanhar de uma volumosa pasta com dossiês relativos ao dispositivo militar na Guiné que foi preparado meticulosamente a fim de poder ajudar os futuros elementos armados da Guiné a substituírem os nossos militares nos diversos pontos do território, por forma a manterem a ordem sem sobressaltos e prepararem um futuro promissor para as diversas etnias que iam passar a ter uma autonomia responsável.

Fui nomeado pelo governador Carlos Fabião depois de ter ouvido o meu chefe directo que me consideraram o elemento do Comando Chefe com mais informação para o efeito desejado.
No aeroporto encontrei-me com o Manuel Monge, hoje general, e pouco depois chegaram Mário Soares, Almeida Santos e Jorge Campinos. Já todos conheciam o Monge. No entanto, Mário Soares, perguntou quem era o João Soares (por exclusão de partes não lhe era difícil saber que era eu) e disse que o filho também se chama João Soares. Foi uma forma simpática de me introduzir no grupo. E informou que a reunião não seria em Londres porque o PAIGC tinha dito que não se sentia à vontade para discutir o assunto em casa de um nosso aliado e tinha proposto a Argélia, o que Portugal aceitara. De maneira que íamos tomar um avião para a Argélia via Paris.

Chegados lá instalámo-nos numa moradia e foi-nos oferecido chá de menta e tâmaras à discrição, além de comodidades muito aceitáveis. Tínhamos sido alertados para a hipóteses de as conversas serem escutadas e gravadas, pelo que ou falávamos no jardim relvado distantes dos canteiros ou à volta de uma mesa em cujo centro colocávamos um rádio que empastelava as nossas vozes em eventual gravação.

No dia seguinte tivemos o encontro e as conversas bilaterais em que o PAIGC era representado por um grupo do tamanho do nosso, sob a chefia de Pedro Pires.

Estou agora a recordar isto e a escrever pela primeira vez, porque é o aniversário desse evento e porque as notícias recentes mostraram, mais uma vez, que a Guiné não soube ou não conseguiu aproveitar da melhor forma a oportunidade de ser um País independente capaz de se governar para bem-estar do seu povo e desenvolvimento das suas potencialidades que, diga-se a verdade, não eram muito promissoras. Mas houve um pormenor que na altura me impressionou e agora recordo com vontade de não o manter no sufoco.

Nas conversações quem falava era Pedro Pires de um lado e Mário Soares do outro (nosso) com pequeníssimas intervenções de Almeida Santos e Jorge Campinos. A dada altura, Pedro Pires na sua arenga contra a repressão dos militares portugueses (o que não podia surpreender, porque era esse o papel que ali estava a representar) falou nos campos de concentração em que tinha sido colocada grande parte da população guineense. O Monge deu-me um toque de joelho e trocámos um olhar de espanto por não ter havido reacção de Mário Soares e, de forma discreta, dissemos que no intervalo íamos chamar-lhe a atenção por ele não ter reagido.

Chegados ao intervalo e após o primeiro gole de chá de menta, mostrámos-lhe o nosso espanto por ele ter deixado sem esclarecimento essa alusão, feita de forma despropositada e hostil, aos aldeamentos construídos quase no estilo de aldeias turísticas dos nossos tempos, com água, proximidade dos campos de cultivo em locais escolhidos pelas pessoas importantes da aldeia (homens grandes) e que muito nos impressionava que os soldados que as construíam, que viviam nas suas aldeias do interior do País com a família em péssimas condições em comparação com aquelas, trabalhavam sem refilarem nem exigirem nada de semelhante para as suas aldeias. Aceitavam o seu espírito de missão sem qualquer sombra de ressentimento, tal fora a sua preparação militar.

Mas Mário Soares que conhecia a Guiné apenas através dos programas que a oposição fazia publicar na Rádio Moscovo, na Rádio Argel, na Rádio Praga e outras, não conhecia minimamente o produto que estava a «vender» ou a dar e não podia dialogar com o «comprador» ou aceitador. E argumentou, como motivo para não ter reagido à alusão a «campos de concentração», a existência do arame farpado que cercava os aldeamentos. Foi-lhe explicado que a única razão era dar alguma protecção aos habitantes contra os roubos dos seus haveres pelos combatentes africanos ocultos no mato na região e que fora pedido pelos «homens grandes» do aldeamento. Limitou-se a dizer «porque não me disseram isso antes?». Para o que não podia haver resposta, pois o desejado «briefing» prévio devia ter sido determinado por ele.

Regressado, a Lisboa voltei a Bissau com a pasta pesada com os dossiês intactos sem terem sido sequer referidos, frustrado pela inutilidade do esforço e pelo amadorismo das «conversações», fiz o relatório ao Governador Carlos Fabião e sugeri que nomeasse outro seu delegado para as novas rondas das conversações, pois não estava interessado em continuar. Veio a ser nomeado Hugo dos Santos, agora general. Pouco depois terminava os dois anos de serviço ali e, apesar disso e de ter regressado definitivamente a Lisboa, ainda lá fui algumas vezes a pedido do governador que depositava em mim confiança para alguns contactos com as altas esferas militares.

Concordo que a descolonização foi feita sob pressões anormais e irracionais, mas devia haver coragem para parar e pensar na melhor forma de garantir o futuro das populações locais, de maneira a não perderem os efeitos positivos do bom que existia e poderem desenvolver todas as hipóteses de melhorar. Não houve a serenidade e o bom senso necessários, não tinha havido preparação de pessoas válidas para o enquadramento da vida social e económica, nem segurança para agirem da forma mais correcta, e depois foi o que se tem visto, até aos nossos dias, passados 35 anos.

A República da Guiné Bissau não começou com os melhores augúrios e tropeçou ao dar os primeiros passos. Oxalá, agora após 35 anos, haja sensatez para recuperarem o bom rumo e superarem da melhor maneira os sofrimentos de todo este tempo.

7 comentários:

Fernando Vouga disse...

Caro João Soares

A História ainda está por fazer.
De qualquer forma, aquilo a que se teima chamar descolonização foi uma tremenda vergonha. Um descalabro. Abandonámos as colónias sem curar devidamente os legítimos interesses dos intervenientes fossem eles portugueses ou africanos. E hoje é o que se vê.
Tudo engendrado por um tal Barreirinhas Cunhal, a soldo do poder de Moscovo. Mário Soares foi um mero peão do tebuleiro. O que interessava na altura era acabar com a "ingerência" portuguesa nos territórios de caça (política) das grandes potências.
As coisas complicara-se com Angola onde os EUA tinham interesses e a FNLA à sua ordem. Daí o verão quente de 75 onde o partido de Cunhal, com as suas tropelias, tornou Portugal ingovernável. Para tudo acabar numa negociata entre o KGB e a CIA. Estregue Angola à influência soviética a 11 de Novembro, acabou a revolução dos cravos. Onze dias depois, quase sem se disparar um tiro, Cunhal entrega o poder a Costa Gomes.

Fernando Vouga disse...

Caro joão Soares

Onde digo "onse dias depois", queria dizer "catorze dias depois"

Um abraço

A. João Soares disse...

Caro Vouga,
Nada acontece por acaso. Vence sempre o que melhor preparado está, com planos de contingência para as eventualidades da «conduta» da operação. Mas, infelizmente, há pessoas que têm demasiada fé no improviso - depois se verá. Estamos numa época em que os responsáveis pensam apenas no próprio umbigo e no curtíssimo prazo. Fazer grandes investimentos para receber boas percentagens. Proteger os empresários amigos com projectos incompletos mais baratos para ganharem o concurso e, depois, com a conivência dos políticos amigalhaços, proporem obras imprevistas e indispensáveis que os políticos aceitam e lá se vai mais dinheiro e mais tempo perdido. Mas há quem enriqueça e receba prémios. Daí resulta o «dinheiro vivo» para os partidos e para os políticos que intervieram no negócio. Pelo menos é o que se pode deduzir do relatório do Tribunal de Contas e do protelamento de OBSERVATÓRIOS que não têm impedido as falhas agora vindas a público.

Mas, apesar dessa miopia que impede de ver um palmo à frente do nariz, há forças organizadas e eficientes que estão activas para tudo dominarem quando lhes pareça oportuno. Qual é a força oculta que controla toda a Comunicação Social, ao ponto de não se falar dos assuntos mais importantes do País, que ficam soterrados por baixo do Ronaldo, com quem dorme e com bebe champanhe, do futebol em geral, das maravilhas, das marchas de santo António, etc. E curiosamente esta acção psicológica com artes de lavagem ao cérebro ocorre um pouco por todo o Ocidente. Hão chame a essa força oculta maçonaria, opus Dei, Bilderberg, Trilateral, etc.
Mas seja um destes nomes ou outro, o certo é que há uma organização a tratar do assunto, tão coordenado e coerente ele está a evidenciar-se.

Não há fumo sem fogo, mesmo quie não se veja a chama.

Um abraço
João

Fernando Vouga disse...

Caro joão Soares

A propósito de poderes ocultos, vale a pena ler o blogue madeirense:
http://comqueentao.blogspot.com/

Um abraço

A. João Soares disse...

Amigo Vouga
Trata-se de elementos pormenorizados sobre os Bilderberg. Mas já estão a descredibilizar o Daniel Estulin, autor do livro, dizendo que tem um qualquer ressabiamento contra o Clube.
Não sei se ainda é vivo!!!
Abraço
João Soares

Anónimo disse...

Caro João Soares:
Apreciei muito a serenidade da sua "Memória de 13 de Junho de 1974".
Relatando os factos, limitou-se a tirar a lógica e certeira conclusão da cábula imperícia de Mário Soares no caso em apreço e que foi, indescutivelmente, uma contribuiução do nosso representante máximo para uma descolonização que se tem mostrado cheia de defeitos.
Cumprimento-o pela serenidade e objectividade.
Pedro Faria

A. João Soares disse...

Caro Pedro Faria,

Obrigado pela sua visita , por ter deixado comentário e pelas palavras com que o fez. A serenidade é uma qualidade que procuro usar nestes assuntos, pois as emoções não ajudam muito a analisar os problemas e têm o inconveniente de poder retirar credibilidade a um tratamento sério dos casos.
Interessa mais procurar saber o que levou as pessoas a actuarem da forma como o fizeram do que condená-las seguindo os nossos conceitos. De uma forma ou de outra, já não se alteram os efeitos de erros cometidos.

Um abraço com a esperança de encontrar mais comentários seus, agora que começou!
João Soares