À hora marcada, estava no aeroporto da Portela para me juntar a um pequeno grupo que ia partir para Londres onde iria ter lugar um encontro entre representantes do poder Português com o PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Fazia-me acompanhar de uma volumosa pasta com dossiês relativos ao dispositivo militar na Guiné que foi preparado meticulosamente a fim de poder ajudar os futuros elementos armados da Guiné a substituírem os nossos militares nos diversos pontos do território, por forma a manterem a ordem sem sobressaltos e prepararem um futuro promissor para as diversas etnias que iam passar a ter uma autonomia responsável.
Fui nomeado pelo governador Carlos Fabião depois de ter ouvido o meu chefe directo que me consideraram o elemento do Comando Chefe com mais informação para o efeito desejado.
No aeroporto encontrei-me com o Manuel Monge, hoje general, e pouco depois chegaram Mário Soares, Almeida Santos e Jorge Campinos. Já todos conheciam o Monge. No entanto, Mário Soares, perguntou quem era o João Soares (por exclusão de partes não lhe era difícil saber que era eu) e disse que o filho também se chama João Soares. Foi uma forma simpática de me introduzir no grupo. E informou que a reunião não seria em Londres porque o PAIGC tinha dito que não se sentia à vontade para discutir o assunto em casa de um nosso aliado e tinha proposto a Argélia, o que Portugal aceitara. De maneira que íamos tomar um avião para a Argélia via Paris.
Chegados lá instalámo-nos numa moradia e foi-nos oferecido chá de menta e tâmaras à discrição, além de comodidades muito aceitáveis. Tínhamos sido alertados para a hipóteses de as conversas serem escutadas e gravadas, pelo que ou falávamos no jardim relvado distantes dos canteiros ou à volta de uma mesa em cujo centro colocávamos um rádio que empastelava as nossas vozes em eventual gravação.
No dia seguinte tivemos o encontro e as conversas bilaterais em que o PAIGC era representado por um grupo do tamanho do nosso, sob a chefia de Pedro Pires.
Estou agora a recordar isto e a escrever pela primeira vez, porque é o aniversário desse evento e porque as notícias recentes mostraram, mais uma vez, que a Guiné não soube ou não conseguiu aproveitar da melhor forma a oportunidade de ser um País independente capaz de se governar para bem-estar do seu povo e desenvolvimento das suas potencialidades que, diga-se a verdade, não eram muito promissoras. Mas houve um pormenor que na altura me impressionou e agora recordo com vontade de não o manter no sufoco.
Nas conversações quem falava era Pedro Pires de um lado e Mário Soares do outro (nosso) com pequeníssimas intervenções de Almeida Santos e Jorge Campinos. A dada altura, Pedro Pires na sua arenga contra a repressão dos militares portugueses (o que não podia surpreender, porque era esse o papel que ali estava a representar) falou nos campos de concentração em que tinha sido colocada grande parte da população guineense. O Monge deu-me um toque de joelho e trocámos um olhar de espanto por não ter havido reacção de Mário Soares e, de forma discreta, dissemos que no intervalo íamos chamar-lhe a atenção por ele não ter reagido.
Chegados ao intervalo e após o primeiro gole de chá de menta, mostrámos-lhe o nosso espanto por ele ter deixado sem esclarecimento essa alusão, feita de forma despropositada e hostil, aos aldeamentos construídos quase no estilo de aldeias turísticas dos nossos tempos, com água, proximidade dos campos de cultivo em locais escolhidos pelas pessoas importantes da aldeia (homens grandes) e que muito nos impressionava que os soldados que as construíam, que viviam nas suas aldeias do interior do País com a família em péssimas condições em comparação com aquelas, trabalhavam sem refilarem nem exigirem nada de semelhante para as suas aldeias. Aceitavam o seu espírito de missão sem qualquer sombra de ressentimento, tal fora a sua preparação militar.
Mas Mário Soares que conhecia a Guiné apenas através dos programas que a oposição fazia publicar na Rádio Moscovo, na Rádio Argel, na Rádio Praga e outras, não conhecia minimamente o produto que estava a «vender» ou a dar e não podia dialogar com o «comprador» ou aceitador. E argumentou, como motivo para não ter reagido à alusão a «campos de concentração», a existência do arame farpado que cercava os aldeamentos. Foi-lhe explicado que a única razão era dar alguma protecção aos habitantes contra os roubos dos seus haveres pelos combatentes africanos ocultos no mato na região e que fora pedido pelos «homens grandes» do aldeamento. Limitou-se a dizer «porque não me disseram isso antes?». Para o que não podia haver resposta, pois o desejado «briefing» prévio devia ter sido determinado por ele.
Regressado, a Lisboa voltei a Bissau com a pasta pesada com os dossiês intactos sem terem sido sequer referidos, frustrado pela inutilidade do esforço e pelo amadorismo das «conversações», fiz o relatório ao Governador Carlos Fabião e sugeri que nomeasse outro seu delegado para as novas rondas das conversações, pois não estava interessado em continuar. Veio a ser nomeado Hugo dos Santos, agora general. Pouco depois terminava os dois anos de serviço ali e, apesar disso e de ter regressado definitivamente a Lisboa, ainda lá fui algumas vezes a pedido do governador que depositava em mim confiança para alguns contactos com as altas esferas militares.
Concordo que a descolonização foi feita sob pressões anormais e irracionais, mas devia haver coragem para parar e pensar na melhor forma de garantir o futuro das populações locais, de maneira a não perderem os efeitos positivos do bom que existia e poderem desenvolver todas as hipóteses de melhorar. Não houve a serenidade e o bom senso necessários, não tinha havido preparação de pessoas válidas para o enquadramento da vida social e económica, nem segurança para agirem da forma mais correcta, e depois foi o que se tem visto, até aos nossos dias, passados 35 anos.
A República da Guiné Bissau não começou com os melhores augúrios e tropeçou ao dar os primeiros passos. Oxalá, agora após 35 anos, haja sensatez para recuperarem o bom rumo e superarem da melhor maneira os sofrimentos de todo este tempo.
Celeste dos Cravos, Sempre!
Há 1 hora
7 comentários:
Caro João Soares
A História ainda está por fazer.
De qualquer forma, aquilo a que se teima chamar descolonização foi uma tremenda vergonha. Um descalabro. Abandonámos as colónias sem curar devidamente os legítimos interesses dos intervenientes fossem eles portugueses ou africanos. E hoje é o que se vê.
Tudo engendrado por um tal Barreirinhas Cunhal, a soldo do poder de Moscovo. Mário Soares foi um mero peão do tebuleiro. O que interessava na altura era acabar com a "ingerência" portuguesa nos territórios de caça (política) das grandes potências.
As coisas complicara-se com Angola onde os EUA tinham interesses e a FNLA à sua ordem. Daí o verão quente de 75 onde o partido de Cunhal, com as suas tropelias, tornou Portugal ingovernável. Para tudo acabar numa negociata entre o KGB e a CIA. Estregue Angola à influência soviética a 11 de Novembro, acabou a revolução dos cravos. Onze dias depois, quase sem se disparar um tiro, Cunhal entrega o poder a Costa Gomes.
Caro joão Soares
Onde digo "onse dias depois", queria dizer "catorze dias depois"
Um abraço
Caro Vouga,
Nada acontece por acaso. Vence sempre o que melhor preparado está, com planos de contingência para as eventualidades da «conduta» da operação. Mas, infelizmente, há pessoas que têm demasiada fé no improviso - depois se verá. Estamos numa época em que os responsáveis pensam apenas no próprio umbigo e no curtíssimo prazo. Fazer grandes investimentos para receber boas percentagens. Proteger os empresários amigos com projectos incompletos mais baratos para ganharem o concurso e, depois, com a conivência dos políticos amigalhaços, proporem obras imprevistas e indispensáveis que os políticos aceitam e lá se vai mais dinheiro e mais tempo perdido. Mas há quem enriqueça e receba prémios. Daí resulta o «dinheiro vivo» para os partidos e para os políticos que intervieram no negócio. Pelo menos é o que se pode deduzir do relatório do Tribunal de Contas e do protelamento de OBSERVATÓRIOS que não têm impedido as falhas agora vindas a público.
Mas, apesar dessa miopia que impede de ver um palmo à frente do nariz, há forças organizadas e eficientes que estão activas para tudo dominarem quando lhes pareça oportuno. Qual é a força oculta que controla toda a Comunicação Social, ao ponto de não se falar dos assuntos mais importantes do País, que ficam soterrados por baixo do Ronaldo, com quem dorme e com bebe champanhe, do futebol em geral, das maravilhas, das marchas de santo António, etc. E curiosamente esta acção psicológica com artes de lavagem ao cérebro ocorre um pouco por todo o Ocidente. Hão chame a essa força oculta maçonaria, opus Dei, Bilderberg, Trilateral, etc.
Mas seja um destes nomes ou outro, o certo é que há uma organização a tratar do assunto, tão coordenado e coerente ele está a evidenciar-se.
Não há fumo sem fogo, mesmo quie não se veja a chama.
Um abraço
João
Caro joão Soares
A propósito de poderes ocultos, vale a pena ler o blogue madeirense:
http://comqueentao.blogspot.com/
Um abraço
Amigo Vouga
Trata-se de elementos pormenorizados sobre os Bilderberg. Mas já estão a descredibilizar o Daniel Estulin, autor do livro, dizendo que tem um qualquer ressabiamento contra o Clube.
Não sei se ainda é vivo!!!
Abraço
João Soares
Caro João Soares:
Apreciei muito a serenidade da sua "Memória de 13 de Junho de 1974".
Relatando os factos, limitou-se a tirar a lógica e certeira conclusão da cábula imperícia de Mário Soares no caso em apreço e que foi, indescutivelmente, uma contribuiução do nosso representante máximo para uma descolonização que se tem mostrado cheia de defeitos.
Cumprimento-o pela serenidade e objectividade.
Pedro Faria
Caro Pedro Faria,
Obrigado pela sua visita , por ter deixado comentário e pelas palavras com que o fez. A serenidade é uma qualidade que procuro usar nestes assuntos, pois as emoções não ajudam muito a analisar os problemas e têm o inconveniente de poder retirar credibilidade a um tratamento sério dos casos.
Interessa mais procurar saber o que levou as pessoas a actuarem da forma como o fizeram do que condená-las seguindo os nossos conceitos. De uma forma ou de outra, já não se alteram os efeitos de erros cometidos.
Um abraço com a esperança de encontrar mais comentários seus, agora que começou!
João Soares
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