terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Atritos entre Belém e São Bento

Transcrição de texto recebido por e-mail do autor, Barroca Monteiro (ex-ajudante de campo do PR Ramalho Eanes em 1981-83).

Porquê um conflito institucional disfarçado (?), entre dois dos mais altos dirigentes do Estado, Presidente da República e Primeiro-Ministro?
Sendo estes atritos recorrentes em Portugal, desde o início do regime, mas raros nos regimes democráticos aliados, pergunta-se qual o seu contributo para um melhor governo do país?
Qual o significado das faltas de sintonia entre dois dirigentes da cúpula do Estado, como? Porquê? e até quando?
Sem a cristalização mental dos filiados em partidos políticos, tenta-se encontrar uma explicação a dois tempos: política (de organização) e pessoal (de personalidades).

Explicação política: Sendo o Presidente eleito por sufrágio directo que leva ao estabelecimento de um elo de ligação particularmente forte com o eleitorado (o seu eleitorado, embora numa perspectiva supra partidária) e sendo dotado de um poder limitado, é estranho que se cerque de um staff de propensão presidencialista, cuja composição permite ter ali um pequeno governo sombra. Para quê?

Tirando o caso do primeiro PR eleito (general Eanes), vindo de fora do sistema partidário e no período de consolidação do regime, que vantagens resultaram dos conflitos políticos dos posteriores PR (Soares, Sampaio) com os sucessivos governos do país?
Careciam tais governos da vigilância e correcção pontual do PR?
Será o PR de um regime democrático a entidade mais ajustada para essa correcção?
No actual mandato presidencial, foi notório o PR a corrigir Governo e AR no caso do estatuto dos Açores, além de outras atitudes semelhantes.

Isto parece proveniente de uma dinâmica pouco salutar desenvolvida desde o início do regime, para satisfação fácil das corporações, sejam profissionais (no Estado) ou políticas (partidos), ou autárquicas (continente/ilhas), traduzida em algumas atitudes a destoar no sistema. Têm-se verificado da parte do PR tomadas de atitudes e decisões, desagradando a partidos e interesses há muito habituados a satisfazer aspirações políticas ou outras, por uma questão de simpatia (dividendos/votos).
Também ocorrem alguns reparos à dinâmica do governo no campo da economia e finanças (investimentos e endividamento públicos, obras públicas), como as referências por vezes tímidas no caso do futuro aeroporto de Lisboa, do natural consequente desagrado do PM e outros interesses.
Com tal dinâmica, em vez de um regime político adulto, com órgãos de soberania vivendo sob o clima de confiança que se encontra na generalidade dos países europeus, temos um regime onde o PR parece destinado a vigiar, controlar e corrigir o governo. Esse efeito acaba por surgir espontaneamente devido ao facto de a Presidência da República estar dotada de um pequeno governo sombra (casa civil), cuja existência seria aliás difícil de admitir, se não servisse para nada.
Será de admirar que a Presidência da República, dotada de tal «governo sombra» se julgue destinada a vigiar, corrigir ou emendar iniciativas governamentais, particularmente quando com origem em governos de partidos de cor política oposta (Soares, Sampaio, Cavaco)? Não servirá essa estrutura para o emprego de apoiantes das candidaturas presidenciais, do candidato a PR e dos partidos apoiantes?

Explicação de ordem pessoal: Os atritos são prováveis quando acontece como agora o Presidente ter personalidade diametralmente oposta à do seu/nosso PM, agravada pela diferença de idade, pelo percursos académicos, profissionais e políticos, partidos de origem e teimosia irredutível.
São dois actores cultural, profissional e politicamente antagónicos, nomeadamente na perspectiva económica e financeira para o futuro. Embora com papeis constitucionalmente delimitados, nem por isso imunes a que os PR se permitam surgir perante o eleitorado em posições antagónicas em relação aos PM. Daí, a necessidade de criar um estilo que passe pela «cooperação estratégica» do PR ou pela «cooperação institucional» do PM.
De entre os termos usados pelo PR na tomada de posse do Governo, que veio posteriormente a reutilizar, a chamada de atenção para o «carácter» na conduta dos actores políticos, diz muito do que se pode suspeitar das relações entre os actores políticos do momento.

E perante isto, a Assembleia da República existe? Será que, cumpre o seu papel de fiscalização do governo, quando as oposições desaprovam as políticas do governo, porque sim, sem apresentarem alternativas para bem de Portugal?
As últimas tomadas de posição das oposições são significativas ao questionar o governo sobre decisões de há anos, como compras militares; processo do computador Magalhães; venda das prisões, etc. Mas tinham estado mudos e calados quando o governo tomou tais opções, tal como outras: futuro aeroporto de Lisboa na Ota; rede de auto estradas ou de comboio de alta velocidade.
Num parlamento sem controlo e com deputados dados a demasiado «trabalho político» fora da AR, falta naturalmente o tempo: para estudar, investigar, criticar denunciando más opções e propor alternativas consistentes.
Com deputados absentistas, em part time e pouco dados ao trabalho de casa, permitindo soluções abortistas como a da Ota ou a sementeira de auto-estradas do governo, quem sobra no sistema senão o PR?
Como chegou o governo à conclusão de que iria haver no TGV Lisboa Madrid, 25 mil passageiros por dia, 12 mil em cada sentido?

P.S.: o vigente sistema semi-presidencial (híbrido), poderia começar desde já a ser pensado para inserir na próxima revisão constitucional. Naquilo que é tão habitual no país, a AR já se manifestou, aprazando a revisão da CRP para mais tarde. Entretanto, a crise institucional, a par da económica, podem continuar!

A bem do Regime.

Barroca Monteiro

NOTA: Acho muito interessantes estas reflexões de quem viveu estes problemas por dentro do palácio, com as quais em grande parte concordo, depois de ter feito parte do gabinete civil da presidência em 1975-76. Depois dessa data conturbada muita coisa mudou, como é lógico, mas houve distorções e indefinições que são altamente nocivas para o País, por acabarem por se reflectir no desempenho das funções das mais altas instituições do regime. A Constituição da República Portuguesa precisa de uma revisão muito profunda, sem paixões partidárias mas com o pensamento em Portugal, para clarificar a estrutura do Estado e assegurar um futuro mais tranquilo e de progresso.

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