Porquê investir no emprego? Despedir é mais vantajoso
Excerto do livro - UMA ESTRANHA DITADURA - de Viviane Forrester
Nos nossos dias, a riqueza já não reside na posse de espécies palpáveis, como o ouro ou mesmo o dinheiro: desviou-se, doravante pouco firme, imaterial, e agita-se, abstracto, furtivo, nos interstícios das transacções especulativas, na volatilidade delas. Provém muito mais dos fluxos especulativos do que dos objectos da especulação. É essa avidez, dirigida para frenesins virtuais, que provoca o devoramento instituído de todos e de tudo por uns poucos, e que se pretende universal, autónoma, livre de qualquer controlo, revelando-se ao mesmo tempo incapaz de se controlar.
É essa obsessão surda, que desemboca em operações delirantes, que entende conduzir o destino do planeta e que ameaça esse destino! Um desejo bruto, primário, irracional, de jogar não tanto com as posses mas com o instinto de posse em detrimento de tudo o que se lhe opõe ou pode atenuá-lo.
A ditadura do lucro, que leva a outras formas de ditadura, instala-se com uma facilidade desconcertante. Os seus meios são de uma grande simplicidade! O mais indispensável deles, a clandestinidade, é-lhe atribuído antecipadamente: mesmo que o lucro seja a chave de tudo, se estiver omnipresente, a sua presença fica sempre oficialmente ausente. Sem dúvida, é considerada adquirida de uma vez por todas, registada e tão banal, de facto, que fazer-lhe alusão seria supérfluo, mas seria sobretudo tido como primário, arcaico e sordidamente campónio, tendência submarxismo antediluviano.
O direito ao lucro, sempre em segundo plano, clandestino, é permanentemente subentendido, mas subentendido... como definitivamente entendido, como absoluto, irrefutável, em suma, de direito divino. Enquanto que, sempre aperaltado com o papel - o único que aceita - de fonte indispensável de abundância e de empregos, esse lucro parece apenas responder às exigências do dever, melhor, estar apenas votado a sacrifícios modestos e silenciosos. Anónimos, pudicos, aqueles que disso aproveitam com tanta abnegação procuram nunca ser citados. Rodeia-os a maior discrição, enquanto em contrapartida são denunciados como verdadeiros aproveitadores, e entregues à vindicta geral, esses desavergonhados, esses notórios açambarcadores: os empregados do sector público e os seus privilégios escandalosos, ou ainda os desempregados, esses calaceiros, vampiros da nação, vergonha das estatísticas, que desafiam o cidadão laborioso e se rebolam, à custa do Estado, na segurança dos seus abonos. À parte os imigrantes que nos esfolam, não se vêem outros beneficiários do lucro, que já não responde, aliás, ao nome de «lucro», e menos ainda de «benefício», mas sim ao de «criação».
E eis que aí vêm as famosas «criações de riqueza», presumivelmente para oferecerem imediatamente os seus tesouros à humanidade inteira. Com que satisfação, com que gratidão, com que admiração elas são evocadas, maravilhas surgidas graças aos seus «criadores», esses dirigentes da economia privada, de repente travestidos de mágicos! Sonha-se com a varinha de condão, com a caverna do Ali-Babá. Ora, de que riquezas se trata? De um enriquecimento da espécie humana? De progressos científicos, sociais? De grandes obras? De objectos essenciais, preciosos ou de grande utilidade? Não, mas de benefícios tirados de uma produção supostamente rentável. De nada mais. «Riquezas» reais, mas que enriquecem apenas os «empresários» e os seus accionistas. «Criações de lucros seria mais adequado».
Pelo menos, esses lucros traduzir-se-ão em empregos? Essas «riquezas» serão distribuídas? É o que nos anunciam, espectacular e incessantemente. Mas essa vocação está completamente ultrapassada: as empresas mais lucrativas despedem a toda a força; os seus decisores têm uma tendência irresistível, uma preferência indefectível pelo abaixamento do custo do trabalho. Porquê investir no emprego? Despedir é mais vantajoso. Já vimos, a Bolsa adora. E o que ela adora faz lei.
É, portanto, a especulação, escondida mas alimentada pelos mercados, que ganha e domina. Vimos que a partir dessas «riquezas» ou só do seu projecto, só da sua hipótese, mil e uma especulações delirantes poderão desmultiplicar-se, indiferentes a qualquer outra produção que não seja a de movimentos de capitais imaginados, enlouquecidos, dissociados da sociedade e de qualquer «riqueza» que não seja neofinanceira. «Riquezas» tão virtuais como voláteis, especulações, ou antes, apostas demenciais que sustentarão o que continuará a ter-se por Economia, a qual se intitulará sempre «economia de mercado» - uma pseudo-economia, de facto, situada a galáxias da esfera das riquezas tangíveis ou mentais com que sonham a justo título as populações, e que lhes são necessárias.
Se essas «riquezas» reclamarem cada vez menos trabalho humano, se provierem de cada vez menos activos reais e se nelas se investir cada vez menos, nem por isso deixa de se esperar dos seus «criadores», esses decisores da economia privada ou esses especuladores (muitas vezes são os mesmos) que, para bem de todos, façam surgir tesouros que supostamente escondam um maná de empregos e, tal como um rio se lança no mar, vão alimentar as empresas. As autoridades de todos os quadrantes e de todos os países celebram esses benfeitores como as «forças vivas da nação», únicos a dar provas de «dinamismo», de «audácia» e de «imaginação» no seio de populações supostamente plácidas e satisfeitas, assentes na segurança do seu RMI [Rendimento Mínimo de Inserção], dos seus subsídios de desemprego, dos seus salários de saldo, enquanto as nossas «forças vivas», intrépidas, são as únicas que «ousam» «correr riscos».
Que riscos? - poderiam ousar perguntar alguns espíritos maldosos. O de produzir lucros ainda mais colossais? Ou mesmo - é caso para tremer! - um pouco menos colossais? Isso seria esquecer os riscos assumidos por essas pérolas da nação quando deslocalizam as suas empresas precisamente para fora da nação, ou fazem fugir para longe dela os seus capitais!
Isso seria esquecer também o risco assumido de estragar o destino da maioria de outras criaturas terrestres e de sabotar as suas vidas únicas de seres vivos, de as manter na angústia e na humilhação, risco que chega mesmo, por vezes, ao ponto de as pôr na rua, literalmente, a pô-las em perigo, a fazê-las cair nesse perigo. Isso seria ainda esquecer o risco assumido, num mesmo impulso criador, de generalizar a miséria, de gerar infernos terrestres. Mas aí estão outros tantos desafios perante os quais os nossos generosos cruzados da criação nunca recuam. Eles garantem...
Louvados sejam eles, cavaleiros da competitividade, campeões da auto-regulação, da desregulação, cuja competência podemos glorificar rodos os dias! Às suas «forças vivas», a nação reconhecida...
Lucro? Você disse lucro?
Assim a clandestinidade do lucro, a sua autoridade, o seu fundamento já não têm que ser estabelecidos: estão antecipadamente convencionados, ordenados e antecipadamente calados. O lucro, subjacente em toda a parte, não está, no entanto, expresso em parte nenhuma, é ignorado em toda a parte, mas, está infiltrado em toda a parte, operacional no coração de todas as coisas - e é aceite sem que tenha sido formulada ou mesmo solicitada qualquer aquiescência consciente. Domina como um princípio sagrado, e reina, nunca evocado, mas razão de ser da ideologia que sustenta o regime e as suas obsessões.
Querem um exemplo destas? A competitividade. Entre as afirmações desferidas como argumentos definitivos, pronunciadas em tom peremptório, com a certeza de ter por si uma aquiescência geral, adquirida para sempre com conclusões nunca verificadas, é uma das mais frequentemente citadas - de forma bastante desprendida, aliás, e como que de passagem, de tal maneira a sua existência, a sua influência e as suas presumidas consequências parecem confirmadas de longa data.
«A competitividade obriga...», «A competitividade não permite...». Quantas carradas de despedidos, de deslocalizações de empresas, de reduções ou de congelamentos de salários, de reduções de efectivos, de estrago das condições de trabalho, quantas decisões desastrosas e perversas pretenderam justificar-se assim! E quantas vozes desoladas para exprimirem então a pena de terem tido que decretar, de terem tido que tomar as decisões-cutelo que a competitividade, ai de nós, exige!
Mas que representa ela? A questão nunca se coloca. Quem está em competição? De que lutas se trata? De que rivalidades? O que está em jogo? Qual é o seu poder ou a sua necessidade para que beneficie de tanta autoridade, para que seja dada ao mesmo tempo como fatal, inelutável e como um factor-chave da economia de mercado, ela própria apresentada e exigida como prova indispensável de democracia? Qual é a sua virtude para que o seu papel, previamente considerado preponderante, nunca seja explicitado, nunca seja analisado, e para que mencioná-la baste para evitar ou encerrar qualquer discussão, qualquer interrogação? Para que tudo tenha que ser concebido, organizado ou reformado em função dela, sem que jamais seja posta em causa? Para que sejamos deixados no vago e achemos normal lá ficar, admitir maquinalmente a competitividade como um fim em si, uma entidade face à qual não exista outra reacção possível que não seja submeter-se-lhe? E para que no fim de contas só essa certeza seja proposta – imposta, melhor – como evidente, indiscutível: é imperativo aceitar ser-lhe sacrificado. Mas, mais uma vez, porquê e a quê? Com que objectivo?
Recebido por e-mail de Maria João F
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