domingo, 8 de agosto de 2010

No tribunal do Porto há 47 anos

Mensagem recebida por e-mail do seu autor. Desconheço em que papel da história se encontrava. Mas, realmente, os tempos mudaram muito...

Caro João

Corria o mês de Agosto de 1963 e pelo Porto ia uma paz podre. Sem casos Freeport ou Casa Pia, luxos que um regime político filho do despotismo esclarecido se não podia permitir, os três jornais diários que, então, a cidade tinha iam enchendo papel, quando podiam, com a guerra de Alecrim e Manjerona do momento, hoje difícil de conceber, qual era a luta assanhada do Coronel Santos Júnior e do Dr. Castela, o primeiro Comandante Distrital da PSP e o segundo Juíz do Tribunal de Polícia, também alcunhado de Tribunal dos Pequenos Delitos, onde se julgavam os processos sumários de presos em flagrante delito e as então chamadas transgressões. Não é que dera na real gana à PSP de autuar os peões que atravessavam as passadeiras com a luz vermelha, obrigando-os a pagar 25 tostões, e que os autuados, como vingança, se haviam lembrado de pagar com três moedas de escudo, declarando que os cinco tostões ficavam para os pobres do Albergue Distrital, a cargo da PSP, dádiva que os senhores guardas não podiam recusar e que os obrigava ao preenchimento de vários impressos ?

Sentado no seu trono, perdeu a calma o Coronel e vá de dar ordem aos seus subordinados para prenderem de imediato os atrevidos, os hospedarem numa cela e os apresentarem no Tribunal no primeiro dia útil para serem julgados... e condenados por injúrias à Exma autoridade. Portador, por certo, de outro espírito de humor, julgava o Juíz os réus apresentados, mas a todos absolvia, aliás de acordo com a Lei, diga-se, e pregava aos infelizes dos guardas, entalados entre dois poderes, autêntico sermão e música cantada.

Corria Agosto, dizia, os Tribunais estavam de férias, à excepção do de Polícia, que as não tinha, e eis que o Delegado do Procurador da República do dito, beirão legítimo, do granítico Viseu, é surpreendido num sábado, a que ainda se trabalhava, por um telefonema do seu colega de turno a substituir o Procurador da República da Relação do Porto, seu chefe, a informar que na 2ª feira iria ter a prenda do julgamento de uma senhora, esposa de um comerciante grado da terra, que caíra na de dar os 5 tostões para os pobres e a dizer que não prescindisse de recurso, o que significava julgamento com depoimentos escritos para poder recorrer da mais que certa absolvição.

"Pior que uma barata", o Delegado, que bem sabia ter por dia meia dúzia de julgamentos sumários e cinquenta de transgressões, lá sossegou da melhor forma o colega, por acaso conterrâneo, e preparou-se para tudo.

Na 2ª feira, deixando, naturalmente, "pior que estragados" o Juíz e os funcionários, fez a competente declaração inicial e lá decorreu o julgamento a "passo de caracol". Terminada a produção de prova, e para culminar, resolveu ainda o Delegado, contra a tradição, fazer alegações para, no fim, o mais teatralmente possível, pedir a absolvição da ré e declarar que, se assim acontecesse, iria ter de recorrer por dever de obediência hierárquica.

Calculo que não tenha sido pequeno o espanto perante um tal gesto, só classificável de loucura, e que os jornalistas dos três diários tenham dado por bem gasto o tempo que lá estiveram. Como certo, apenas tenho que boa ginástica teve o Delegado de fazer para, face aos Juízes da Relação, justificar o recurso quando a sentença fora a que pedira. Mas duas satisfações lhe ficaram, primeira a de ver por eles confirmado que a atitude dos réus era uma "picardia" reprovável, mas não um crime de injúrias, e segunda a de, quando as férias estavam a terminar e o Procurador telefonou a lembrar o recurso, lhe ter podido responder que estava há muito interposto mas que, por acaso, até pedira a absolvição..... E, já agora, anote-se que processos semelhantes não houve mais... e que uma dúvida ainda hoje me assalta: se o Procurador, que era um Juiz, não estaria até interessado em que o seu Delegado assumisse mesmo a atitude de rebeldia que assumiu, ele que tinha a vantagem de não ser de nomeação política.

Mas perguntarás a que propósito vem esta história com quase cinquenta anos.

Vem porque me recorda que, nestes anos, em Portugal, nem só o clima mudou... Como era diferente um tempo em que Juízes e Magistrados do Ministério Público não armavam banca nas televisões, na blogosfera ou na imprensa para se insultarem quando estavam em desacordo e não se metiam na política (aliás estavam tramados se se metessem... mas essa é outra conversa…). Facto é que se foi a sensação de que ser magistrado era quase um sacerdócio, como o era ser professor ou ser militar... Hoje é um modo de vida. E é uma sensação dolorosa.


Um abraço do
João Mateus

Imagem da Net.

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