sexta-feira, 6 de julho de 2012

Corte de subsídios inconstitucional

Transcrição da carta do Vice-Almirante Botelho Leal, recebida por e-mail. No fim colocam-se links de algumas notícias, com ela convergentes, publicadas uma semana depois.

Exmo. Senhor Tenente-General Carvalho dos Reis, Digníssimo Chefe da Casa Militar de Sua Excelência o Presidente da República

Sou militar, Vice-Almirante na situação de reforma, oficial das Forças Armadas Portuguesas que servi com orgulho, honrando o juramento que prestei,ao serviço da Pátria que fui incumbido de defender.

Como militar que sou e educado que fui na adesão a Valores como a honra, a lealdade, a ética, a servir os interesses que jurei e não outros, acreditará que, porventura, mais que outros cidadãos, estou disponível para sacrificar-me pelo bem comum desde que esteja em causa a sua prossecução, como o atesta a concreta sujeição que a minha condição me impõe, nomeadamente quando me predispus a aceitar disponibilidade permanente para defender a Pátria se necessário com o sacrifício da própria vida!

Não está pois, nem poderia estar em causa, pretender eximir-me a sacrifícios que vão sendo impostos à generalidade dos cidadãos.

No entanto, verifico que, aos militares, aos funcionários públicos, aos elementos das forças e serviços de segurança, reformados e pensionistas, foram impostas as medidas de austeridade mais gravosas.

Como servidor do Estado, à semelhança de todos os meus concidadãos que o são também, e como cidadão fardado, sujeito à condição militar que me impôs particulares deveres e me restringiu direitos de cidadania, sinto-me injustiçado e discriminado pela forma como tenho vindo a ser penalizado a pretexto do saneamento da dívida e do défice públicos.

Recuando apenas ao ano de 2005, as condições com que os militares se vêm confrontando, têm vindo a ser continua e violentamente deterioradas, ao arrepio, inclusive, do que é acautelado pela Lei das Bases gerais do estatuto da condição militar a qual, para compensar os militares dos especiais deveres e restrições a que estão sujeitos, consagra “especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da segurança social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação”. Subsidiariamente o mesmo estatuto “garante aos militares e suas famílias, de acordo com as condições legalmente estabelecidas, um sistema de assistência e proteção, abrangendo, designadamente, pensões de reforma, de sobrevivência e de pensões de preço de sangue e subsídios de invalidez e outras formas de segurança, incluindo assistência sanitária e apoio social”.

Nada disso tem sido levado na devida conta. Bem pelo contrário! Têm vindo a ser implementadas sucessivas medidas, tratando por igual quem manifestamente deve ser tratado de forma diferente porque, diferentes, são também as condições em que servem ou serviram, em circunstâncias sem paralelo na sociedade.

E, a culminar a desconsideração a que eu e todos os militares temos sido sujeitos, tiveram por bem os responsáveis pela governação, proceder ao corte dos subsídios de férias e de natal em 2012 e anos seguintes, sem previsibilidade do seu estabelecimento, a juntar às reduções remuneratórias operadas a partir de 2011 para os que se encontram nas situações de ativo e de reserva.

Medidas eivadas de evidente falta de justiça e equidade, com contornos que considero aproximarem-se da imoralidade.

Porque me questiono quanto à razão ou razões que determinam que a um universo de cidadãos (aos que servem a coisa pública), seja conferido um tratamento diferenciado, desigual e particularmente penalizador relativamente aos restantes cidadãos!

Onde está a equidade quando, aos que exercem atividades na esfera do Estado, relacionadas, por conseguinte, com serviços prestados à comunidade, perante uma divida pública e um défice considerados excessivos, são imputadas particulares responsabilidades para as quais, tal como a maioria dos restantes cidadãos, em nada concorreram?

Trata-se de uma situação objetivamente desprovida de qualquer sentido e arredada de equivalente noção de senso de justiça já que, admitindo-se a necessidade de solucionar o problema relacionado com o equilíbrio das contas públicas, não é admissível que seja imputada a uma parcela da comunidade (aos que prestam serviço no Estado) de que todos fazemos parte, a singular responsabilidade de suportar os custos decorrentes de gastos excessivos da responsabilidade de sucessivos governos. Cujos governantes, um dia, essa mesma comunidade, por inteiro, encarregou de zelar, ao que se supunha, pelo bem público, ao serviço de todos e não exclusivamente ao serviço dos que agora são particularmente responsabilizados, como a discriminação das medidas adotadas parece fazer crer.

E, permitindo-se-me o pleonasmo, injustiça exacerbada quando, tais medidas, são do mesmo modo extensivas aos cidadãos fardados, cuja condição militar lhes impõe deveres, ao mesmo tempo que os arreda de muitos dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição, consagrados para a generalidade dos cidadãos.

Injustiça e discriminação tanto maior quando se assiste à cadenciada dispensa do corte dos subsídios em questão a alguns grupos de profissionais, no contexto do universo dos que estão subordinados à tutela do Estado, transmitindo-se a ideia de que “se uns são filhos outros serão enteados”.

Injustiça que sinto ainda mais profundamente quando sou confrontado com dúvidas, por parte da tutela, sobre a sustentabilidade do Fundo de Pensões dos Militares (FPM) e, para já, com a suspensão do pagamento do respetivo complemento de reforma, por os sucessivos Governos não o terem atempadamente capitalizado como legalmente estabelecido. FPM para o qual, aliás, escrupulosamente contribuí na esperança de assegurar a dignidade de uma velhice mais tranquila, como merecido por quem deu o seu melhor na defesa dos Superiores Interesses da Pátria.

Face ao que precede, em que relato as razões que me levam a considerar iníquo o corte dos subsídios de férias e natal e inaceitável a suspensão do pagamento do complemento da pensão de reforma, solicito a V. Ex.ª, Sr. General, que leve ao conhecimento de Sua Excelência o Presidente da República as razões que me assistem, acima aduzidas, na esperança de que o seu sentido de justiça e equidade já publicamente manifestado relativamente a opções de idêntico teor, penalizadoras para os cidadãos, possa fazer com que utilize o seu magistério de influência no sentido de que seja dada diferente orientação a medidas que, sacrificando os cidadãos, transportam consigo uma forte carga de injustiça, atenta a forma discriminatória como são aplicadas.

Com os melhores cumprimentos

Data 31 de Maio de 2012

José Manuel Botelho Leal, (Vice-Almirante Ref), NIM 31959 Marinha

NOTA: Artigos de jornal publicados uma semana depois:

- Cortes dos subsídios a pensionistas e funcionários ferem princípio da igualdade
- Presidente do Tribunal Constitucional votou contra inconstitucionalidade do corte de subsídios
- Acórdão do Tribunal Constitucional- TC diz que cortes não são iguais para todos na proporção das suas capacidades financeiras
- Constitucional só permite cortes nos subsídios de férias e Natal este ano (act)
- Passos admite estender o corte de subsídios ao sector privado
- UGT: Decisão do Tribunal Constitucional é "boa notícia para trabalhadores"
- Passos Coelho: Austeridade para substituir cortes de subsídios será "alargada a outros portugueses" (act)
- Bagão Félix: Decisão do TC abre caminho a distribuição mais equitativa dos sacrifícios

Imagem de arquivo

2 comentários:

Fernando Vouga disse...

Caro João Soares

Começo por lhe pedir desculpa pela insistência...
Concordando na generalidade com a carta aqui apresentada, tenho dificuldade em aceitar, mais uma vez, a tese do juramento. Tudo porque essa referência desvia a atenção do essencial, cheira a penacho e tira força ao texto.
Hoje em dia já ninguém dá qualquer relevo a tal procedimento que, num mundo laico, não passa de uma mera formalidade sem qualquer sentido.
Por um lado, não são só os militares que juram. Jura o PR, membros do Governo, etc.. Mas tal não lhes altera os comportamentos, como se tem verificado. Faltam ao juramento sempre que lhes aprouver. Por outro lado, cria, na cabeça do cidadão comum, a ideia de que quem não jurar não é obrigado a "dar o litro", digamos assim.
Acabe-se com tal aberração e esclareça-se toda a gente, a começar por cima, que todos somos obrigados, sem excepções, a cumprir fielmente as nossas funções as quais, se tiverem a ver com a defesa da Pátria podem implicar o risco da própria vida.

A. João Soares disse...

Caro Vouga,

Estou totalmente de acordo e permito-me colocar aqui em destaque a frase final do seu texto.

esclareça-se toda a gente, a começar por cima, que todos somos obrigados, sem excepções, a cumprir fielmente as nossas funções as quais, se tiverem a ver com a defesa da Pátria podem implicar o risco da própria vida.

A educação desde criança devia sublimar o culto da excelência, fazer bem cada coisa que se faz. À medida que o ensino e a sociedade exigir de cada um a perfeição dos seus actos haverá mais segurança, menos acidentes e mais eficiência na actividade de cada um em qualquer lugar ou função. Mas hoje não há consciência do dever, há apenas exigência de direitos.

Um abraço
João