quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Democracia, totalitarismo e globalização


Na linha do tema do post Controlo total dos cidadãos, transcrevo um trecho do livro de José Gil «Portugal, Hoje – O Medo de Existir», de Relógio D’Água Editores, Novembro 2004, à semelhança daquilo que já foi feito acerca da burocracia que constitui um aperitivo para ler toda a obra:

«Se parece descabido, ou mesmo monstruoso, comparar, no plano político, o regime totalitário com o regime democrático em que vivemos, já não o é tanto quando se traça um paralelo entre os princípios «ideológicos» (na terminologia de Hannah Arendt) do totalitarismo e os efeitos sócio-económicos do capitalismo vigente e da globalização.

Há certamente um «totalitarismo» próprio das «sociedades de controlo» (Foucault, Deleuze) actuais. A aplicação das novas tecnologias a todo o tipo de serviços, por exemplo, implica o imperativo, por exemplo, implica o imperativo de cumprir os regulamentos sob pena de exclusão. A globalização acentua e generaliza esse tipo de padrões únicos de comportamento – na necessidade de responder às exigências de produtividade do trabalho de seguir as vias impostas pela funcionalidade dos serviços de saúde, dee3ducação, de lazeres. Um exemplo emblemático já utilizado em Portugal, nos serviços prisionais, a pulseira magnética de localização a distância que o prisioneiro levará consigo sempre que se ausente da prisão. (Em breve seremos todos prisioneiros em liberdade, controlados a distância.) O cidadão só pode submeter-se e aderir, em nome da lógica funcional do sistema de regulamentação da vida social, pública e privada. Caso contrário, surge, automaticamente também, a ameaça da exclusão.

A exclusão, nesse tipo de regime que tende a controlar o conjunto dos comportamentos do indivíduo, não significa apenas tal ou tal efeito determinado (como o desemprego) mas atinge todos os aspectos da vida individual. O regulamento estipula que se corte a água, quando não se paga a conta nas datas fixadas. Mas quem já não pode pagar a água está na iminência de não pode pagar a electricidade, a renda, a escola das crianças, os transportes, a alimentação. Exige-se uma integração tão completa do indivíduo, que o mínimo desvio é sinal de catástrofe, quer dizer, de perigo de exclusão total.

A exclusão total não é só um fantasma das grandes cidades altamente desenvolvidas, tornou-se uma realidade de todos os dias e muito mais vasta. A norma que marca a fronteira e a exclusão não diz: «Ou tudo ou nada» (porque tudo, só muito poucos o têm), mas indica a separação que faz de um homem integrado um ser social normal e de um excluído um pária, alguém que é visto como vivendo em condições sub-humanas -- e que, por isso mesmo, vai perdendo qualquer qualquer coisa da «essência do género humano». Ou seja, a exclusão não é apenas «social», ou «do mercado do trabalho», ou «racial», ou «cultural», ou «psicológica», ma atinge o cerne da humanidade do homem.
(Que ausência de humanidade não é por nós sentida no arrumador toxicodependente, sujo, esfarrapado. Que se arrasta de carro para carro?)

Assim, é de maneira natural e democrática que se cria um padrão único de humanidade. Não estamos muito longe do totalitarismo descrito por Hannah Arendt – um totalitarismo não político, mas não menos destruidor, a longo prazo.

Em Portugal vive-se uma situação particular, de transição das sociedades «disciplinares» para as de controlo, cada vez mais apanhada pela rede geral da globalização. Como todos os estados de transição, este mostra-se extremamente complexo, heterogéneo, com múltiplos traços arcaicos que coexistem e lutam ainda contra as novas regras que definirão a sociedade futura. Limitamo-nos aqui a evocar o problema da individualidade da norma numa tal situação.

Sucintamente:

1. As normas da sociedade tradicional «disciplinar», que correspondiam a hierarquias De poder político e social tendem a ser substituídas por normas únicas, de que se não conhecem as fontes de autoridade nem as fronteiras qe elas marcam.
2. Enquanto na sociedade «disciplinar» e autoritária »(salazarismo) a hierarquia constituía uma rede de burocracia e de pequenos despotismos – a distância do ditador ao povo transferia-se imaginariamente para cada um dos patamares do poder na sua relação ao cidadão --, na nova sociedade de transição a autoridade da hierarquia tende a desaparecer em benefício de uma «norma única», quer ela emane do sistema tecnol Ogico de controlo, quer dos progressos da globalização.
3. Nas sociedades autoritárias, o medo é o «princípio de acção» (H.Arendt, citando Montesquieu). No caso português, o medo era difuso, sem objecto preciso (a não ser para a «Oposição», ubíquo, impregnando o espaço, invadindo os corpos e os espíritos sem que os indivíduos se apercebessem disso. (A autoridade e o objecto do medo encarnavam-se, nas ocasiões necessárias, no ditador e nas instituições repressivas.)

O estado de transição actual da sociedade portuguesa, com a passagem rápida de um regime autoritário para um regime em que a disciplina emana do sistema orgânico da funcionalidade tecnológica, cria uma situação em que o novo «princípio de acção» surge como um prolongamento natural do medo. É também invisível e ubíquo, inelutável e único. E é, como veremos, uma certa forma transformada de terror.

Que não se esqueçam, porém, as diferenças (paradoxalmente, aqui, elas contribuem para as convergências). O suporte político do medo foi a ditadura: o suporte do «princípio de acção» actual, em democracia, não sendo (ainda e sobretudo) o desejo e a liberdade, subentende-os. É porque eles existem e se inscrevem na própria prática e princípios democráticos que a sua supressão automática e efectiva (em benefício do seu contrário, a norma única), se torna mais enigmática e, de certo modo, inconscientemente aterradora.(…)

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