Transcrição de artigo em que se destaca uma acção pouco conhecida da Comunicação Social, mais obsessivamente preocupada com coisas de somenos.
É preciso ter muita, muita lata
JN. 130308. Publicado às 00.01. Por Paulo Ferreira
A discussão sobre o número de dias em que Cavaco Silva se manteve sossegado no Palácio de Belém sem dirigir a palavra ao assustado povo português é deveras palpitante.
É fácil imaginar um agricultor a pensar, enquanto pega na enxada: "Que diabo! Mais um dia sem ouvirmos o senhor presidente". Ou um desempregado, na fila de espera para ser atendido no centro de emprego: "Isto é impossível. O senhor presidente não quer saber de nós!". Ou mesmo um empresário a congeminar, enquanto faz contas à vida: "E o senhor presidente não tem nada a dizer sobre o definhamento acelerado do tecido empresarial, ou sobre a falta de crédito? Que coisa estranha!".
A ironia serve para dizer o seguinte: um país, como o nosso, que tem 29% das suas crianças em risco de pobreza e se embrulha, ou deixa embrulhar-se, num debate tão profícuo como é o do eclipse mediático do chefe de Estado é, verdadeiramente, um país de pernas para o ar. Bem sei: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Mas, convenhamos, entre as duas coisas, uma é séria e preocupante; a outra não é séria nem preocupante.
Contas feitas, são perto de 580 mil as crianças que vivem mergulhadas na pobreza, ou que estão lá perto. São jovens a quem o país está a negar o presente, a escurecer o futuro e a roubar a felicidade. Podemos engrossar este drama se trouxermos para a discussão os cerca de 2 milhões de portugueses que acordam, todos os dias, sem saber se vão conseguir alimentar-se decentemente. A taxa de risco de pobreza está a subir desde 2011, apesar da quebra generalizada de rendimentos trazer para baixo a definição de limiar da pobreza. Este, sim, é o drama que não pode ser alvo de um eclipse mediático.
É precisa muita bondade e muita ingenuidade para acreditar que esta vergonha perderá intensidade nos próximos anos. E é por isso que devemos prestar homenagem a quem, longe dos holofotes, faz coisas para, pelo menos, amenizar o sofrimento de algumas crianças.
É o caso de Denis Conceição, professor de Educação Física em Fajões, Oliveira de Azeméis. Ele é o impulsionador de um movimento que, juntando oito agrupamentos escolares, tenta matar a fome a quem mais precisa. Basicamente, as escolas puseram os alunos a levar de casa latas de alimentos (cheias). Com elas farão esculturas. Haverá uma exposição, finda a qual os alimentos serão entregues a pessoas carenciadas. Há centenas de professores e milhares de alunos e famílias envolvidos neste projeto tão singelo quanto estimável. São réplicas destes movimentos nascidos na sociedade civil - e, no caso, exponenciados em meio escolar - que podem ajudar a minorar a dor escondida no coração de quem já esgotou todas as possibilidades de ser feliz.
E, afinal, basta apenas ter lata. Ou melhor: muitas latas.
Imagem do JN
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