domingo, 13 de julho de 2014

CIDADANIA E MILITARES

Transcrição de texto de João J. Brandão Ferreira:

ALEGAÇÕES FINAIS (julgamento Manuel Alegre versus Brandão Ferreira) 10/07/14

Na estrofe 33, do Canto IV dos Lusíadas, Camões (esse sim um verdadeiro poeta da Pátria) declamava assim:

“Ó tu, Sertório, ó Nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos Antigos
Que contra vossas Pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.”

Como podem verificar o que estamos aqui a tratar tem raízes antigas…

É minha convicção que este julgamento não existiria e não teria razão de ser, caso o agora assistente tivesse sido acusado e julgado, quando voltou a pôr pé na terra que lhe deu o berço, nos idos de 1974. Ele e todos aqueles que procederam como ele.

Só os tempos de grande perturbação política, militar e social e de absoluto desnorte, então vividos, explica, mas não desculpa, o sucedido.

Estamos hoje, pois, a dirimir questões com 40 anos de atraso, as quais podem prescrever face às leis da sociedade, mas não prescrevem na memória e consciência dos homens, nem no julgamento da História.

Lembro Judas Iscariotes, apóstolo de Cristo que o traiu após a última ceia, que é o caso mais conhecido a nível mundial e não há memória, entre nós, de que o Miguel de Vasconcelos tenha tido, até hoje, qualquer estátua em Portugal!

Neste caso, eu e o cidadão Manuel Alegre, não podemos estar certos ou errados, ao mesmo tempo.

As razões pelas quais intervim na Fundação Gulbenkian no início de Maio de 2010 e questionei o queixoso, no fim da sua arenga e, na sequência, escrevi o artigo “Manuel Alegre combatente por quem” – e apenas esse – não se destinou a prejudicar o assistente enquanto candidato a PR. Até pela simples razão de que ele não tinha qualquer hipótese de ganhar.

Sem embargo, quem ouviu os testemunhos da outra parte e não saiba do que se trata, podia ficar a pensar que Manuel Alegre não ganhou as eleições presidenciais, por causa desse artigo…

Tão pouco estabeleci contactos fosse com quem fosse para fazer o que fiz – apesar de querer deixar bem claro que no enquadramento legal existente, esses contactos mesmo que fossem para prejudicar a campanha do putativo candidato, eram lícitos, dado que eles são parte da intervenção cívica e do exercício dos direitos de cidadania.

O que essa intervenção tem é que ser verdadeira e não ir contra a lei e os costumes e não ofender a Moral e os ditames consciência pública.

Ora eu só referi a verdade, não atentei contra a lei nem ofendi a Moral pública!

Exemplo disso é que nunca lhe chamei desertor, pois apesar de ser “vox populi” tal epíteto, eu conhecendo um pouco mais da vida de MA sabia que, técnica e juridicamente, ele não o era. Pelo contrário, eu é que me sinto ofendido na minha qualidade de cidadão português!
Intervim por um imperativo de consciência, de boa-fé e por entender que a denúncia era de interesse público.

De facto, sendo oficial superior da FA, não me esqueci da minha formação, tão pouco dos juramentos que fiz. E, ao contrário de oficiais, alguns dos quais ouvidos por este tribunal como testemunhas do assistente, que se esqueceram dos deveres e valores militares, eu só penso dar baixa deles para a cova!

Destas testemunhas apenas pretendo referir-me a duas por serem os únicos que me mereciam consideração. Refiro-me aos Maj. Gen. Manuel Monge e Gen. Ramalho Eanes.

Quanto ao primeiro – e complementando o que foi dito pelo meu advogado, Dr. Lafayette, a quem quero agradecer publicamente tudo o que tem feito e por ser um “combatente do bom combate – pretendo salientar o esforço que fez em arranjar um discurso diferente que o salvaguardasse das contradições em que se enredou.

Falo da tentativa de tornar a definição de “traição” relativa e subjectiva. Ora o significado de Traição à Pátria, para além de ser intuitivo, isto é, toda a gente o entender, está perfeita e legalmente definido nos normativos dos Código Penal e no Código de Justiça Militar.

Mas, se por acaso, o termo fosse considerado subjectivo ou de aplicação relativa, passaria à categoria de opinião e, nesse caso, eu também tenho direito a uma, o que dispensaria este julgamento.

Manuel Monge quis ainda ilustrar o que defendia dando como exemplo a condenação à morte do General Gomes Freire de Andrade, por “traição à Pátria” e hoje existir uma rua e um busto, em Lisboa, com o seu nome.

Todavia, não podia ter escolhido pior exemplo: é que Gomes Freire foi enforcado, não por traição à Pátria, mas sim por ter liderado uma tentativa falhada de golpe de estado…
E se tem rua e estátua, em Lisboa é, talvez, por ter sido Grão - Mestre do Grande Oriente Lusitano…

Quanto ao Gen. Eanes – que conheci ainda cadete, em 1972, quando ele foi proferir uma palestra à Academia Militar sobre a situação na Guiné (de que já deve estar esquecido) - apenas pretendo referir uma dúvida que me assalta: o que é que ele faria se tivesse visto o assistente, frente a frente, quando havia guerra? Por exemplo, logo após uma unidade do PAIGC ter assassinado quatro oficiais e três guias civis, desarmados que estavam a negociar a paz com vários grupos de guerrilheiros (como já referido neste tribunal). Dava-lhe um abraço ou um tiro?

Lembro ainda que a única matéria que foquei na minha intervenção, refere-se ao período em que Manuel Alegre passou na Argélia, como membro do PCP (até 1970), e da Frente Patriótica de Libertação Nacional (entre 1964 e 1974), e naquilo que disse aos microfones da “Rádio Voz da Liberdade”, também conhecida por “Rádio Argel” – e apenas essa, pois nunca referi qualquer outra, nomeadamente a Rádio Brazzaville”, como já aqui se tentou insinuar na tentativa de confundir o tribunal.

Eu nunca ouvi a rádio Argel, nem cheguei a combater nos teatros de operações africanos (porque era novo), mas desde cedo na minha carreira e até hoje, que ouvi falar do que lá se passava e dizia, além de ter lido alguma da documentação que existe sobre o assunto. Documentos e pessoas das quais não posso, nem devo, duvidar. Pois os tenho, aos primeiros como fidedignos, e às pessoas como dignas de crédito, por as conhecer, por serem gente de bem e combatentes valorosos e patriotas, como V.Ex.ª tiveram ocasião de verificar, quando alguns deles testemunharam nesta sala.

Por isso não existe qualquer dúvida no meu espirito, que parte do que Manuel Alegre dizia na chamada “Rádio Voz da Liberdade”- note-se que foram 10 anos, não foram 10 dias – não constituía apenas luta política contra o regime de então, mas configurava um crime de traição à Pátria, à luz do Direito Penal então vigente e do actual, por estar a apoiar objectiva e concretamente, os movimentos de guerrilha que nos emboscavam e matavam os soldados e tentavam separar territórios portugueses, da Mãe-Pátria.

Sim, porque esses territórios nos pertenciam por direito próprio e eram, simplesmente, Portugal mais longe! (Faziam parte, por ex., de todas as Constituições e não apenas da de 1933…). E não ajudava só estes, mas também as potências estrangeiras que patrocinavam os movimentos ditos emancipalistas!

Por muito menos foi um desgraçado soldado português fuzilado na Flandres, em 16 de Setembro de 1917…

Além do mais não concordar com uma guerra, não dá o direito a ninguém de trair os seus, como a participação portuguesa na frente francesa, na I Guerra Mundial, tão bem ilustrou.

Seria até curioso saber como é que o assistente designa os autóctones que se mantiveram fieis à sua condição de portugueses tendo combatido ou não, nas Forças Armadas nacionais e foram fuzilados pelo inimigo, muitos deles já depois das hostilidades terem cessado. Serão traidores? E a quem?

A apreciação que faço é válida naquele tempo, no anterior, actualmente, e sê-lo-á, certamente, no futuro.

Ora chamar a atenção, publicamente, para o passado de uma figura como a do assistente, que exerceu e exerce cargos de relevância política, nos últimos 40 anos, não é de somenos importância – sobretudo quando tal figura pretendia vir a exercer o mais alto cargo da Nação que, por inerência de funções, acumula com o de “Comandante Supremo das Forças Armadas”.

Tem, outrossim, a maior relevância, não sendo apenas uma “aresta” sociológica, como o advogado do assistente tentou fazer crer na 1ª sessão do julgamento.

Gozei até hoje da plenitude dos meus direitos e deveres cívicos. A minha atitude limitou-se a usufruí-los.

Não foi um caso isolado; uma embirração de momento; um fugaz interesse que despertou. Tem sido uma postura de sempre, patente nos cerca de 1000 artigos, cinco livros e dezenas de conferências, que escrevi, o podem atestar. Um destes livros versa, especificamente, a justiça e o Direito em fazermos a guerra que travámos no Ultramar; a sua legitimidade, sustentabilidade e as razões porque desistimos de lutar e sofremos a maior derrota da nossa História!

Derrota, aliás, humilhante e vergonhosa, para a qual o assistente activamente contribuiu e que apenas encontra paralelo nas consequências de Alcácer-Quibir.

Por isso a minha eventual condenação seria, também, uma ofensa a todos os combatentes de sempre e por maioria de razão aos heróis, alguns dos quais me orgulho de ter como testemunhas, e de cuja acção vou condensar num trecho do relatório dos sobreviventes da guarnição da Lancha Vega, relativo ao seu comandante, Segundo-Tenente Oliveira e Carmo, morto heroicamente nas águas de Diu, em 18 de Dezembro de 1961, e cito:

“O Senhor comandante dirigiu-se à Camara e fardou-se de branco, dizendo que assim morreria com mais honra. “Rapazes, sei que vocês vão cumprir assim como eu e que mais vós quereis! Acabarmos numa batalha aeronaval. Fazemos parte da defesa de Diu e da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala se possível”. “Algumas despedidas se fizeram e até as fotografias dos entes queridos foram beijadas e guardadas nos bolsos dos calções”.

Permitam, para finalizar, que leia o penúltimo parágrafo, do meu livro “Em Nome da Pátria”: “Não soubemos merecer os nossos antepassados, poderá ser a síntese que nos leva ao veredicto final: aqueles que não souberam defender a Pátria, por não a terem sabido amar, acarretarão para sempre, e perante a posteridade, a responsabilidade e a vergonha de a terem deixado perder”.

Meritíssima Juíza,
Passei horas de minha vida sentado nesta sala, a olhar para o símbolo maior deste tribunal: a imagem da balança e da figura vendada, pintadas na parede à minha frente e que representam a Justiça e da qual, neste caso, é V. Exª, o fiel garante.

Estou certo e quero crer, que esse valor maior que é a Justiça será preservado neste julgamento.

João J. Brandão Ferreira

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