sábado, 20 de janeiro de 2007

O VENDEDOR DA BANHA DA COBRA

Artigo de opinião do Jornal de Notícias que merece ser lido (estudado) com concentração e, depois, bem meditado, a fim de melhorar a couraça que devemos utilizar como defesa contra as tentações de credulidade.

O vendedor da banha da cobra
José Silva Peneda, Eurodeputado, JN 070120


O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de histórias de ficção. O vendedor de banha da cobra existe, evoluiu, continua por aí e é muito hábil e astuto.
Todos sabemos que a banha da cobra não serve para nada mas a convicção que esse vendedor transmite, através duma oratória bem estudada e estruturada, convence muita gente sobre as capacidades infinitas do milagroso medicamento. Impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, treçolho, verrugas, cravos e desmanchos são alguns dos males que a banha da cobra afastava a quem a quisesse comprar.


Ainda tenho no ouvido partes dessa oratória "Não custa nem 20, nem 15, nem dez! Custa apenas cinco, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina... e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir o pacote..."


E o povo lá ia comprando e o vendedor da banha da cobra lá se ia governando.
Este era o autêntico vendedor da banha da cobra que até seria capaz, se não de pagar impostos, pelo menos de pagar a licença municipal para utilização do espaço das feiras, onde afirmava que trabalhava honestamente porque não estava ali para enganar ninguém.


Porventura, o vendedor da banha da cobra existe há séculos e, se é seguramente certo que a banha da cobra não cura, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública e para o Mundo.


Se calhar, também por causa da globalização e das mudanças que por todo o lado vêm acontecendo a um ritmo colossal, alguém pode pensar que o vendedor da banha da cobra desapareceu. Ora, isso não é verdade. O que sucedeu foi que o vendedor da banha da cobra sofreu uma transformação e adaptou-se aos novos tempos. Digamos que não desapareceu, antes evoluiu para um estádio mais sofisticado.


Trata-se assim de mais um caso típico onde de uma estratégia assente na base de mão-de--obra barata e pouco qualificada, se passa para outra, onde o conhecimento e a inovação permitem alcançar níveis de competitividade mais elevados e o que é certo é que o nosso vendedor da banha da cobra continua a sua actividade de sempre, mas agora, em vez da banha da cobra, vende outro tipo de ilusões.


Abandonou a linguagem vernácula para passar a utilizar formas mais subtis e sofisticadas de comunicação, muitas graças às novas tecnologias e modernas técnicas de marketing, tudo no sentido de estar mais bem apetrechado para convencer os potenciais compradores das novas ilusões.


Veste agora de forma muito mais elegante e usa um corte de cabelo moderno.

Exibe uma grande autoconfiança que, por vezes, roça a altivez própria dos fracos.

Dá mostra de intransigência perante grupos isolados, prévia e cuidadosamente seleccionados, para mostrar ao mercado que veio para ficar.


Cria expectativas muito tentadoras que, a serem concretizadas, só o serão lá para as calendas.


É capaz de prometer a prosperidade para amanhã, quando a realidade é a dívida crescer dia a dia.


É um verdadeiro mestre a prometer hoje uma coisa para fazer o oposto amanhã, com toda a tranquilidade e impunidade.


Facilmente cria a ilusão de que o mal está a ser fortemente atacado, quando os sintomas se agravam de forma persistente.


Aparenta uma simpatia face aos clientes para, nas costas, desdenhar da sua ingenuidade.


É exímio em levar os clientes a acreditar que vão ganhar o euromilhões.


Perante a descoberta da trapaça feita, não dá sinais de atrapalhação e chega ao ponto de pedir à vítima um pedido de desculpas.


Fala muito de rigor e jura tratar todos por igual mas, às escondidas, faz descontos aos mais poderosos.


Com um passo de mágica, convence muitos clientes que a felicidade se atinge sem qualquer tipo de esforço.


Quando surpreendido por uma observação de um cliente mais lúcido, é notável a forma como atribui sempre a culpa aos fornecedores do passado.


Exibe um poder que não é capaz de exercer porque, no fundo, tem medo de perder os clientes.


Virá o tempo, e mais rapidamente do que se pensa, em que o vendedor da banha da cobra ficará fora do prazo e terá de mudar de vida.


Quanto aos clientes, para já, parecem satisfeitos.


Tal como no tempo da banha da cobra, compram sem pensar e sem precisar. Tal como no tempo da banha da cobra, acham graça e simpatizam com o estilo do vendedor de ilusões. Tal como no tempo da banha da cobra, estão contentes, porque estão iludidos.


Os clientes andam por aí. Até pode ser o povo de um país.

3 comentários:

A. João Soares disse...

Temos de admitir a hipótese de os governantes serem bem intencionados. Eles têm vantagem em conquistar a simpatia dos eleitores para, em futuras eleições, lhes darem preferência.
O mal poderá estar na sua incapacidade e impreparação para gerir um simples quiosque e ainda não se term apercebido que o País, embora pequeno, é muito mais complexo do que uma mercearia de bairro. Por outro lado, a solução não está em copiar aquilo que teve êxito na Finlândia ou na Irlanda, porque lá as condições são diferentes, o problema tem dados diferentes. Aqui é preciso esboçar a resolução a partir da análise dos dados reais. Mas eles não estudaram matemática, ou já a esqueceram!
Falam, falam, e não dizem nada!
Um abraço
A. João Soares

Anónimo disse...

Ainda me lembro muito bem dos antigos (e quase inocentes comparados com os de hoje)vendedores de banha de cobra. Ficou-me gravada na memória, era eu adolescente (e inocente), uma vez em que um desses vendedores ambulantes prometia mostrar uma jibóia. Era dia de feira em Lamego. Fiquei à espera para ver esse prodígio da natureza. Mas, antes de a mostrar, o vendedor fez uma advertência: as mulheres que não tivessem "calças" (cuecas) deveriam apertar bem as pernas...
Aquilo fez-me espécie, já que eu não vislumbrava o motivo de tal cuidado...
Por fim, foi a desilusão total. Em vez de uma jibóia viva, o tal da banha de cobra desentrolou uma pele da dita.

A. João Soares disse...

Meus Amigos,
Parece que não leram a última linha do texto:

«Os clientes andam por aí. Até pode ser o povo de um país.»

O vendedor da banha da cobra em questão está aí e aparece na TV, com várias máscaras, todos os dias. É o «parlapatão» e nós somos os «pacóvios» que lhe compramos o produto, as ideias falaciosas, as falsas promessas, as propagandas mentirosas embrulhadas nas boas técnicas da «Acção Psicológica», do controlo dos espíritos, no «bom» estilo preconizado por George Orwell no seu livro «1984».
Coloquei aqui este artigo porque o achei interessante, na imagem utilizada do aldrabão de feira.
Um abraço
A. João Soares