Vale a pena, pelos ensinamentos que encerra e pelo insólito da situação, recordar um pormenor picaresco do desempenho extraordinário de Domingos Manuel Fialho Palma (falecido em Cuba, sua terra natal, em 5 de Setembro de 1996) na Transtejo, seguindo um texto de Eduardo Maria Rato Martins Zúquete.
No seguimento do movimento do 25 de Abril e na época tumultuosa e vertiginosa dos governos provisórios –cuja vivência forte, poderosa, agreste só a nossa geração e as próximas estão em condições de plenamente avaliar – o nome do Domingos apareceu em cena. As várias empresas que detinham a concessão do transporte fluvial no Tejo na região de Lisboa tinham desaparecido, volatilizadas na turbulência política e sindical da época e arruinadas por uma gestão decadente e pouco esclarecida. A inauguração da ponte sobre o Tejo, em Agosto de 1966, liquidara, pela mais fácil concorrência rodoviária, um monopólio mal organizado e não teria havido a clarividência de prever que a ponte até poderia ter ajudado o sistema fluvial a se reordenar de uma forma mais conveniente. Tinham ficado apenas ruínas – administrações ausentes, barcos abandonados e desprovidos de condições de navegabilidade, pessoal entregue à sua sorte, lamentando-se e exigindo imperiosamente o céu e a terra.
Entendeu-se então, depois do declínio e da agonia lenta e mal assumida, que era indispensável e urgente reabilitar o transporte fluvial, particularidade única de Lisboa e da Grande Lisboa, que muitas vezes não tem sido avaliada nem correctamente estimada, e que, para o efeito e com vista a tirar o maior partido da situação, havia que reunir numa empresa pública única todas as diversas (sete, salvo erro) concessões de travessia – empresa essa que, de início, tinha um nome complicado e gongórico mas que alguém mais esclarecido acabou por crismar simplesmente de Transtejo, nome sugestivo e forte que perdura. E confiou-se a presidência da sua administração à CP, que será o parceiro mais robusto e mais bem equipado d grupo ma que minuciosas ou mesquinhas razões, não sei ao certo, acabaram excluindo da parceria – aparentemente com prejuízo do sistema, certamente com prejuízo do utentes,
Mas, além disso, era preciso encontrar um nome de perfil raro para gerir não só o quotidiano da organização como também o seu inadiável reordenamento. Pedia-se alguém que conhecesse bem o meio marítimo e as circunstâncias empresariais, que soubesse lidar com a administração pública e com os diferentes sindicatos, que tivesse boa preparação de gestão ou de economia e uma assinalável capacidade de liderança. E por cima de tudo, que tivesse coragem física, disponibilidade total, gosto pelo risco, sentido apurado do dever e, em particular, um entusiasmo genuíno e contagioso de nível muito acima do razoável.
O membro do Governo responsável anunciou o caderno de encargos, recortou o perfil, pediu nomes. E alguém sugeriu o Domingos Palma: oficial de Marinha na reserva, administrador de uma empresa que fechara as portas recentemente, com frequência adiantada do curso de economia e então desempregado – obedecia com justeza a parte do caderno de encargos. O resto das condições só quem o conhecesse poderia avaliar e havia de fazer fé nas referências: o «boneco exterior» dava, por vezes, uma frouxa réplica da riqueza interior.
Domingos aceitou o convite sem alegria nem pesar, sem exclamações de júbilo ou de desgosto. Era uma missão, mais uma missão, e havia que a cumprir – da maneira melhor que soubesse e pudesse, com lealdade, firmeza e empenhamento. Era esta a sua escola, a sua postura neste mundo. E foi exactamente assim que sucedeu, posso testemunhá-lo.
Não cabe nos estreitos limites desta pequena notícia descrever o que foi a actuação do Domingos Palma à frente dos destinos da Transtejo – porque, em pleno entendimento com o seu presidente, engº Seixas, foi ele que transformou profundamente todo o quadro empresarial e funcional da organização e, com ela, dos transportes da Grande Lisboa; é, portanto, uma longa, rica e movimentada história que merecia ser investigada, coordenada e escrita mas que, muito provavelmente, ficará sepultada no esquecimento pelos motivos do costume: modéstia de uns, incúria de outros, inveja de terceiros.
Mas vale a pena, pelos ensinamentos que encerra e pelo insólito da situação, recordar um pormenor picaresco desse desempenho extraordinário.
De todos os problemas que Domingos Palma enfrentou de início, aquele que parecia de mais difícil solução era o da indispensável renovação da frota. Havia que substituir embarcações velhas e inseguras, havia que preencher vazios na frota para melhorar os serviços de transporte. A resposta dos estaleiros portugueses consultados era cara e lenta – o preço parecia limitar fortemente a quantidade de embarcações a encomendar, elo menos de momento, mas o mais preocupante era a demora, quase insuportável. Os estaleiros também tinham as suas razões – problemas de desinvestimento, instabilidade laboral afinando pelo diapasão da instabilidade política vigente, dificuldade em programar e cumprir preços e prazos. Além disso, não havia rotina de encomendas naquela área, havia que redesenhar, ganhar experiência, readquirir o «saber como» indispensável que fora interrompido ou negligenciado durante anos. Enfim e à primeira vista, o problema não pareça ter qualquer solução.
Foi então que Domingos teve conhecimento – estou para saber como mas creio que aconteceu no decurso de uma conversa casual – que a empresa de transportes fluviais de Hamburgo, a HADAG, tinha excedentes da sua frota. Fora aberta ao público uma nova travessia rodoviária sobre o Elba e o tráfego fluvial decaíra consistentemente: havia embarcações encostadas sem afectação de serviço, imobilizadas, fortes candidatas a prematuro abate. Um telefonema simples terá confirmado a disponibilidade e o interesse do operador alemão em as alienar.
Domingos Palma não hesitou e marchou imediatamente para o Norte da Europa, em visita de avaliação e sondagem a várias capitais e vários operadores de transportes marítimos e fluviais, e, muito especialmente, para Hamburgo, onde permaneceu mais demoradamente mas não aderiu aos padrões que seriam habituais na circunstância: preferiu levar a família e instalar-se, em férias, num parque de campismo local. Enquanto a família gozava os passeio e as férias, Domingos negociou longamente com a HADAG do modo peculiar de que só ele tinha a receita: com avanços e recuos, cedências e intransigências, rigor e diplomacia, simpatia e dureza, paixão e desapego.
No final, os resultados foram espectaculares: pelo preço de uma única embarcação nova nos estaleiros nacionais e a prazo longo, a Transtejo obtinha, imediatamente 4 embarcações em excelente estado de conservação, revistas e aprontadas para um novo período de serviço, já pintadas com as novas cores e o novo logótipo da empresa e ainda equipadas com os jogos apropriados e habituais de sobresselentes (veios e hélices, designadamente). No preço estava ainda incluído o custo do transporte em pontão trazido por rebocador de alto mar, de Hamburgo para Lisboa, custo nada negligenciável. Era um fôlego novo para uma empresa completamente asfixiada.
Todavia, o ambiente toldou-se um tanto no final. Os homens da HADAG perguntaram ao Sr. comandante em que hotel ele estava alojado, para lhe enviarem a documentação final do processo, e ele, com o ar mais natural deste mundo, soletrou o nome do parque de campismo onde aboletara. Sorrido cortês dos alemães, que não escapou nem agradou ao Domingos mas cujo verdadeiro significado ele não podia adivinhar.
Despediram-se as partes contratantes, haveria agora um compasso de espera. O acto final iria verificar-se em determinado dia no cais, quando estivessem concluídas todas as tarefas agendadas e contratadas – pintura, revisão, embarque em pontão, cabo de reboque passado, tudo a postos para a largada.
No dia aprazado, o Domingos apresentou-se no cais de Altona e ficou estarrecido com o que viu. Certo, lá estavam, alinhadas aos pares, as quatro embarcações recém-adquiridas, flamejantes no seu laranja-e-branco acabadinho de pintar, o duplo TT da Transtejo intrigando os marítimos locais que desconheciam o logótipo, os respectivos sobresselentes estendidos e bem amarrados na base do pontão. Mas, surpreendentemente, havia uma coisa nova, uma coisa a mais: outro barco! Encarrapitado na plataforma da vante do pontão, atravessado por falta de espaço, uma quinta embarcação, bastante mais pequena e aparentemente mais idosa, repousava nos seus picadeiros, bem amarrada e pronta para a longa viagem. E também ela rejuvenescida, pintada de fresco, com o novo logótipo estampado na chapa, vidros e cromados cintilando ao sol matinal do Elba.
Incredulidade, perplexidade, fúria branda – eu sei lá o que se passou pela cabeça do Domingos! Que história era aquela? Como aparecia aquele quinto barco, de que ninguém falara? E já pintado e pronto, embarcado e amarrado a bordo, materializando, sem retorno, o facto consumado!? Que história, que cabala, que equívoco produzira esta confusão?
Só posso imaginar o frenesi da situação, o desassossego do Domingos enquanto não encontrou os responsáveis e os confrontou, de cenho carregado, com a bateria inevitável de questões. Como? Quem? Quando? E…Quanto?
A resposta era simples mas inesperada: o novo barco, apenso gratuitamente à encomenda inicial, bem como toda a sua reabilitação e o seu transporte – se é que isso agravou os seus custos – eram ofertas da administração da HADAG à Transtejo. E porquê semelhante gentileza, tão pouco habitual no mundo áspero dos negócios? Simples, também: porque a administração da HADAG ficara muito sensibilizada com a atitude do administrador da empresa portuguesa, recusando mordomias fáceis e hotéis caros, quando estava lutando com dificuldades económicas para põe a funcionar minimamente a sua organização e, portanto, entendera dar, também ela, a sua colaboração às colegas portuguesas e fazia-o desta maneira. Era uma embarcação mais pequena e mais antiga, sem dúvida, mas, nas circunstâncias vigentes, talvez pudesse auxiliar a administração portuguesa a solucionar a grave crise que atravessava.
Desfez-se o equívoco, rasgaram-se os sorrisos, agradeceu-se a gentileza, reatou-se a normalidade. O recém-chegado foi baptizado de Castelo, em homenagem ao bairro de Lisboa do mesmo nome, que era ao tempo a matriz da nomenclatura, e não resta dúvida alguma que fez muito jeito, olá se fez! As cinco unidades provenientes do Elba permitiram à Transtejo encarar com mais segurança o período considerável que iria ser percorrido até começar a entrega periódica dos cacilheiros da nova geração e continuaram ao serviço mesmo depois disso acontecer, confinadas gora ao triângulo operacional Belém – Trafaria – Porto Brandão, de menor tráfego. Como este serviço apenas carecia de três unidades em, rotação, a quarta resguardava para manutenção ou reserva e a quinta passou a fazer serviço de turismo e aí, o velhinho Castelo teve os seus derradeiros momentos de glória, pavoneando-se Tejo abaixo, Tejo acima durante o tempo que durava o circuito turístico, e sempre embandeirado em arco, num permanente sorriso festivo, dádiva ímpar da Natureza, que a maioria dos portugueses ignora ou quer atravessar o mais depressa possível sem olhar.
NOTA: Trata-se de um exemplo de modéstia e rara honestidade com os dinheiros públicos. Sinto-me feliz por poder aqui dar esta prova da honradez de um português que merece ser apontado como exemplo às gerações seguintes. Repousa em paz Domingos Manuel Fialho Palma.
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Há 1 hora
2 comentários:
Caro Soares
Cruzei-me duas vezes com o Palma: em 1964 quando desempenhava o cargo de Comandante do Porto de Nacala em Moçambique e em finais da década de 80, numa agradável noite de "bridge". Para além do excelente convivío testemunho a sua formação humana e elevada craveira intelectual e profissional.
Ao tomar conhecimento deste relato sinto-me reconfortado pelo excelente desempenho do Palma,apenas preocupado em obter o melhor para o País, com exemplar e escrupolosa gestão da "coisa pública". Se os nossos governantes adoptassem sempre este procedimento, sem dúvida que o País estaria num patamar de desenvolvimento mais elevado.
Um abraço
Eurico Azevedo
Caro Eurico,
Obrigado pelo comentário. Quanto a este relato, ele foi lido pelo Zúquete no convívio na Amadora em 14 de Outubro de 2002. Não te recordas, tal como eu não me recordava. Era um momento festivo pouco propício a concentração nas palavras do orador!!!
O Stoffel, no almoço de 26 de Março falou nisto, encontrei o papel e trouxe para aqui, por se enquadrar no estilo que este blog tem seguido.
Um abraço
A. João Soares
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