Fruto fatal dos anos que se vão acumulando, surgem-me, cada vez mais, de supetão, no ecrã da memória, frases vindas dos tempos da juventude, daqueles saudosos tempos em que éramos obrigados a saber de tudo um pouco, ao contrário dos dias de agora, em que a NET lá está para nos informar, se nos informar, e com a condição, apenas, de sabermos o que é que lhe queremos perguntar…
Foi assim que, por estes dias, me veio à superfície uma velha “lei”que dizia que causas idênticas, em condições idênticas, produziam, ou tendiam a produzir, idênticas consequências, só que sendo, realmente, uma mais que remota recordação, não terá sido sem um porquê que ela me surgiu do baú das recordações.
Trouxe-a à tona, na verdade, o “facto” do momento, a vitória de Obama nos “States”, e surgiu a ligar dois momentos e dois locais diferentes. Sendo um dos factos, necessariamente, essa vitória é o outro uma vitória muito semelhante em Portugal: a de Sócrates na sequência do desgoverno que o antecedera..
E não será uma possível semelhança de ideais políticos entre ambos que me leva a olhá-los em conjunto. O que me move nessa ligação é a circunstância de, numa como na outra, e sem querer retirar mérito a qualquer dos vencedores, o factor mais relevante dessas vitórias, que não podiam deixar de acontecer, ter sido a acção ou a inacção dos verdadeiros vencidos, e digo assim porque, nos Estados Unidos, quem realmente foi vencido foi todo um demasiado longo governo de Bush Jr., e não o candidato à eleição que soube perder com a maior dignidade.
Seja qual for a soma das virtudes dos vencedores, a verdade é que as suas vitórias nunca poderiam ter sido tão expressivas se os seus antecessores não tivessem sido quem foram, particularmente no caso de Obama que, há meio ano, ninguém ousaria antever Presidente….dos Estados Unidos.
Santana Lopes soube unir a vontade de um País no sentido de o mandar embora, tal como Bush conseguiu unir aos democratas a parcela dos americanos que tradicionalmente não acreditam que haja político que justifique a maçada de ir votar e que, desta vez, entenderam que se impunha fazê-lo, e até mesmo uma fatia dos tradicionais republicanos, já farta de um governo absolutamente autista e desejosa de algo de novo, virado para os interesses do povo, que não para meros mitos da economia.
Será que este gesto higiénico que põe fim a uma política desastrada para a América e para o Mundo virá transformar tudo num Éden? Obviamente que apagar quanto de mau se fez no seu país com as políticas aí seguidas e, no resto do Mundo, com as políticas aí induzidas, seria uma obra impossível para oito anos de mandato que sejam. Basta olhar para os danos ambientais causados pelo aquecimento global, em boa medida resultantes da cegueira bushiana nessa matéria, vetada que foi pelo capitalismo selvagem, a que sempre esteve vendido, qualquer medida que pudesse aumentar as despesas ou diminuir os lucros dos detentores do capital.
Mas, por muito verdadeiro que tudo isto seja, o que não deixa dúvidas é que algo tinha de mudar e sem ser para que tudo continue na mesma.
Estará, porém, Obama à altura da tarefa que o espera? Será que as maiorias que, entre nós, se denominam maiorias absolutas e, lá, residem na convergência política da Presidência e das duas Câmaras não são portadoras de graves riscos para uma sã democracia? Restarão dúvidas de que o ter “a faca e o queijo na mão”, sendo essencial para a realização de um programa coerente, pode ser também o “caldo de cultura” ideal para o posso, quero e mando gerador de todos os abusos? Abstraindo da generalização que encerra, não teria um fundo de razão o geógrafo e pensador anarquista francês Elisé Reclus ao afirmar que “é uma lei da natureza que toda a árvore dá o seu fruto natural, que todo o governo floresce e frutifica em caprichos, tirania, usura, infâmias, morticínios e desgraças”, desde que o deixem, acrescento eu?
Do poder absoluto de mandar, da necessidade íntima de mostrar esse poder aos insubmissos, da convicção de que se é dono exclusivo da verdade e da razão, do esquecimento de que o poder de que num determinado contexto se dispõe não é de origem divina mas provém de um mandato popular, concedido com base na confiança em promessas mil de dedicação à defesa dos interesses do mandante, não estarão, neste momento, entre nós, pais, professores, estudantes a sofrer consequências que não se sabe aonde poderão chegar? Não estará também a massa anónima dos contribuintes a perguntar a si própria se o seu dinheiro não irá servir para “indemnizar” especuladores mergulhados em mais que duvidosos investimentos da alto risco, escondidos atrás de pequenos depositantes e aforradores, esses sim a justificar a protecção do Estado?
Questões importantes, por certo, mas que muito longe nos levariam…
Para já, certo é apenas que, lá como cá, foi pronunciada uma sentença popular que condenou um estilo de exercício do poder a que urgia pôr fim. Do resto, só o tempo permitirá julgar, não se podendo, porém esquecer que, cá, o novo veredicto se aproxima a passos largos.
De momento, só nos resta ao “God bless America”, de Irving Berlin, acrescentar um “God bless the World” e, à cautela, ir “fazendo figas” para que se não venha a, por desmedido orgulho, gerar por aqui alguma nova “reacção” de contornos desconhecidos que possa redundar no divórcio entre o eleitorado e a classe política, sempre passível de consequências dramáticas de que a História regista exemplos, e que possa tornar baldados quantos sacrifícios nos foram e estão a ser exigidos em nome da correcção do “défice orçamental”.
João Mateus
NOTA: Caro João Mateus, do alto da tua quase vetusta idade e do muito saber fermentado na experiência de uma profissão consolidada em contactos diversificados, pareces um oráculo, deixando em aberto muitos temas para reflectir e definir dúvidas que buscam respostas assentes em sérias análises.
Obrigado por mais esta douta colaboração para este modesto espaço que fica à espera de mais textos com o teu habitual timbre.
Os Amigos de Trump
Há 3 horas
2 comentários:
Caro João Soares
Obrigado por nos ter proporcionado este excelente texto, tão excelente como a análise que contém.
Quanto aos EUA, não são comparáveis com o nosso cantinho à beira-mar. Apesar dos muitos erros, esse grande país tem uma enorme tradição democrática e revelou no passado uma capacidade de recuperação sem paralelo na História. Foi destroçado na guerra civil para, décadas depois, vir à Europa salvar os aliados na I GM. A seguir à grande depressão de 29, aguentou duas frentes da II GM e, após a vitória, sagrou-se como a primeira potência mundial.
Aqui em Portugal... Bom... Passo!
Só para terminar, é bom que nos lembremos que, em qualquer parte do Mundo e em qualquer época, um democrata é sempre um ditador em potência. Basta que lhe sejam dadas as ferramentas adequadas.
Caro Vouga,
O seu comentário é uma síntese da história dos últimos tempos. A parte final é uma verdade que só não vê quem não quer. No post anterior «Democracia não significa apenas eleições» deixo essa ideia numa parte realçada a roxo. Hoje, em países como o nosso, dos menos desenvolvidos, democracia significa ditadura a prazo renovável por quatro anos! Vejamos o que se passa com os professores, o que se passou com médicos, juízes e militares -quero poso e mando e não altero uma linha!
Não se governa com o povo, nem para o povo, mas sim contra o povo, mesmo que se trate de profissionais da mais elevada preparação.
Um abraço
João
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